Onde podemos contar nossas próprias histórias?
De alguns anos pra cá, circulando por eventos literários e festivais de cinema, assistindo novelas e indo ao teatro, foi possível ver como histórias com protagonismo LGBTQIAP+ ganharam um novo fôlego comercial. Furaram bolhas, subiram nas listas de livros mais vendidos e ocuparam o topo do ranking das séries no streaming.
Avançamos sim, mas eu quero aproveitar essa oportunidade para dividir um pouco dos percalços que ainda sinto no mercado, como escritor e roteirista gay. Também sou ator, mas falar sobre isso seria abrir outro armário de problemáticas.
Como criador e contador de histórias, quero que elas sejam vistas, lidas e publicadas, claro. É o meu trabalho. Criar novos mundos e chegar até um determinado público.
Em 2012, quando lancei meu primeiro curta, “Gaydar”, eu ainda nem tinha falado publicamente que era gay, com medo de prejudicar minha carreira de ator (olha eu aqui falando dela). Com o filme, participei de festivais de cinema LGBT e, com as premiações, me senti confiante para fazer meu próximo curta, “Rótulo”, em 2013. Dali em diante, não parei mais.
Os festivais de cinema foram o primeiro lugar onde não me senti sozinho enquanto criador dessas histórias. Eram muitos cineastas, atores, atrizes, produtores, roteiristas da mesma comunidade. Eram muitos longas e curtas das mais diversas linguagens e estilos, cheios de subjetividades e nuances e cores e trilhas, todes diferentes entre si. Uma gama de histórias que abraçava as plateias lotadas das salas de cinema.
Minha segunda casa foi o teatro, onde pude escrever peças com personagens gays e lésbicas. Sem vergonha e cheio de orgulho. Livre para contar a história que eu queria, do jeito que eu queria.
Em 2021, publiquei meu primeiro romance, “O primeiro beijo de Romeu”, pela Galera Record. Uma história sobre um menino arrancado do armário, que luta para derrubar a censura contra o livro de seu pai e reencontrar seu primeiro amor.
Com a entrada na literatura, foi a vez de rodar por dezenas de eventos literários, vendo como livros escritos e/ou protagonizados por LGBT+ ganhavam cada vez mais destaque e reconhecimento, principalmente entre os leitores mais jovens. A febre da literatura YA (Young Adult) de vinte e poucos anos é um fenômeno recente e inspirador.
Tudo isso para levantar aqui os três locais onde sinto que é possível contarmos nossas histórias com total liberdade: em festivais de cinema (cinema autoral), nos teatros e na literatura.
Mas e nas novelas da tv aberta? E no streaming, onde não há pressão por audiência e podemos ter mais liberdade do que na tv aberta?
Vamos lá.
Agora mesmo em 2023, no mês do Orgulho, teremos o especial “Falas do Orgulho”, na Rede Globo, um programa com histórias LGBTQIAP+, exaltando nossa comunidade. Ao mesmo tempo, beijos entre personagens LGBTs são censurados a toda semana na novela das 19h da própria emissora, o sucesso “Vai Na Fé”. De que adianta fazer um programa para exaltar nossa comunidade, se nossos afetos são censurados?
Na Bienal do Livro do Rio, em 2019, quando o então prefeito Marcelo Crivella censurou livros LGBT+ por conta da ilustração de um beijo entre dois jovens vingadores do mesmo gênero, houve forte repercussão e condenação àquele ato ilegal.
Qual a diferença daquela censura literária para esta censura de beijos em novelas? Pois é, nenhuma. Censura é censura. Não dá pra levantar bandeira de arco-íris num programa e rasgá-la em outro.
Isso porque ao debater a representatividade LGBT+ na televisão, é da Rede Globo que falamos, o único espaço onde esse debate ainda é possível, aos trancos e barrancos, entre avanços e retrocessos. E é importante criticarmos, lutarmos por mudanças, porque é a TV aberta que chega ao Brasil inteiro, falando para milhões de brasileiros todos os dias e construindo nosso imaginário social.
É um espaço onde podemos contar nossas histórias livremente? Infelizmente, não.
Quando esses personagens puderem demonstrar os mesmos afetos que os personagens heterossexuais, aí sim estaremos falando de igualdade na telinha.
Então, corremos para o streaming. Ufa, não há desculpas como classificação indicativa para censurar beijos entre personagens LGBT+! Mas também não há quase nenhum investimento em produtos nacionais.
Reparem no catálogo da Netflix, HBO Max, Amazon Prime e Globoplay. O conteúdo LGBT é em sua maioria de filmes e séries estrangeiras. Ou filmes que nasceram em festivais de cinema e que foram comprados pelo streaming para integrar seus catálogos.
Se observarmos os projetos originais nacionais, veremos que o problema para o roteirista brasileiro LGBT ainda é gigante. “Todxs Nós” (HBO), “Manhãs de Setembro” (Amazon Prime), “Super drags” (Netflix), “Caravana das drags” (Amazon Prime) e “Carlinhos e Carlão” (Amazon Prime), são alguns dos poucos exemplos que temos. Destaque para a Amazon Prime, sejamos justos.
Participando de rodadas de negócios, vejo que há uma maior abertura, mas temos que acompanhar para saber se nos próximos anos, teremos mais produções brasileiras com esse protagonismo sendo financiadas.
Como roteirista, já presenciei alguns absurdos. Em uma live, em 2021, uma representante de uma das maiores produtoras do Brasil disse que a falta de projetos LGBTs era pela falta de bons projetos. Que os projetos deveriam ser menos militantes e mais bem escritos. Aquilo me soou tão equivocado que quase fiquei sem resposta. Quase. Porque ainda tive tempo de rebater que era injusto colocar nas costas dos próprios roteiristas LGBTs a culpa por não haver representatividade no nosso audiovisual. A falta de diversidade nas telas é culpa nossa? Nem pensar.
Em outra ocasião, finalizando um curso de roteiro, apresentei um projeto de série que tinha um protagonista bissexual, um rapaz gay e uma jovem travesti. Escutei de um dos professores que ter muitos personagens LGBTs acabaria diluindo o conflito do protagonista bissexual. Ou seja, não dá pra ter muito LGBT porque dilui a narrativa… Sim, não faz o menor sentido. Desde quando o número de personagens heterossexuais dilui a narrativa da hétero protagonista? Pois é, essa questão não existe.
Nesse mesmo curso, ouvi de uma das alunas outro disparate. O protagonista era abusado sexualmente por um padre e o professor me dizia que o retorno do protagonista à sua cidade natal ia alargando seus buracos, cada vez que ele se aproximava do trauma de infância. Sim, os buracos eram metafóricos, claro. Mas uma aluna comentou no chat da turma: “é sobre buracos alargados, literalmente kkkk”. Sim, ela fez piada com o abuso sexual do protagonista bi. E, sim, eu fiquei revoltado com aquele comentário e a naturalização da “piada”, até na nossa ficção.
Levando até para a minha análise pessoal, constatei que, sim, eu estaria sujeito a comentários lgbtfóbicos em todas as vezes que criasse uma história. Essa era a realidade e eu precisava me acostumar com ela, mesmo que seguisse disposto a enfrentá-la.
Com esse panorama, volto ao início. No teatro, no cinema autoral e na literatura, eu sinto que posso tudo. Que não vai ter nenhuma estrutura heterossexual me dizendo o que posso ou não fazer. Se é de “nicho” ou não. Se pode ter beijo ou não. Se pode ter muitos personagens LGBT+ ou não.
Já soube de uma série LGBT+ que foi cancelada no streaming porque outra série LGBT+ não tinha repercutido muito bem. Outra situação que nunca existiu com produções heterossexuais. Nenhum filme com protagonismo hétero é cancelado porque outro filme hétero foi um fracasso. Por que essa régua ainda existe para nossas histórias?
Aos escritores, roteiristas e artistas LGBTQIAP+ em geral, meu recado nesse mês do Orgulho é para que não desistamos, mesmo diante de tanta besteira jogada na nossa cara. Só reclamando e insistindo que vamos avançar. Eles não percebem o mal que tudo isso nos gera, ou simplesmente não se importam. Mas a nossa vida vai passando e quando percebemos, estamos lutando sem parar e recebendo migalhas.
Chega.
Já passou da hora de quebrar todos os armários.
Felipe Cabral é carioca, formado em Jornalismo e em Artes Cênicas, seguiu como ator, dramaturgo, roteirista e escritor. No cinema, fez seis curtas com temática LGBTQIA+, enquanto na TV, foi colaborador nas novelas “Totalmente Demais” e “Bom Sucesso” (Rede Globo), roteirista do humorístico “Vai Que Cola” (Multishow) e redator final da série “5x Comédia” (Amazon Prime). É autor de “O Primeiro Beijo de Romeu” pela Record.