Adriana Calcanhotto definiu muito bem os cariocas, numa canção lançada em 1994.
São bonitos, bacanas, sacanas, dourados, modernos, espertos, diretos, alegres, atentos, sexys, claros, nascem bambas, nascem craques, têm sotaque e não gostam de dias nublados nem de sinal fechado.
Quase 30 anos depois, talvez fosse a hora de atualizar algumas coisas.
Sim, continuam bonitos – ainda que o botox, a bichectomia, a harmonização facial, as próteses de silicone, a overdose de whey e o preenchimento labial tenham tido consequências deletérias, agravadas pela pandemia de barbas desenhadas e sobrancelhas que emulam o logo da Nike. Ivo Pitanguy teria que sair às ruas com os olhos vendados, para não morrer de desgosto.
Sim, continuam bacanas. Não no trânsito (buzinam freneticamente para os que fecharam os cruzamentos, antes que pudessem fazê-lo), na escada rolante (bloqueiam a passagem de quem está com pressa) ou no metrô (empacam na porta, dificultando a vida de quem quer entrar ou sair).
Estão menos dourados, com a popularização do filtro solar. E não tão modernos (experimente fazer topless em Ipanema ou andar de mãos dadas com e namorade na Praça Seca). Atentos, a não ser que estejam empurrando carrinho no supermercado ou pedalando na ciclovia. Sexys? Hmmm… só para quem gosta de corpos rabiscados.
Talvez os cariocas já se conformem com a existência de dias nublados ou estejam em processo de entender o conceito de “sinal fechado”. Mas, definitivamente, odeiam silêncio ou sons da natureza.
Vá ao Arpoador para a tradicional cerimônia de fumar maconha e aplaudir o pôr do sol (não necessariamente as duas coisas, tampouco nessa ordem). Haverá alguém com uma caixa de som, bancando o DJ do crepúsculo e impondo seu (mau) gosto musical a quem estiver num raio de uma centena de metros.
Suba à Pedra Bonita para admirar a vastidão do mar emoldurado pela mata e contido pelas areias de São Conrado, e se admirar com a inconsequente bravura dos que se atiram de parapente ou de asa delta sobre a paisagem – e haverá alguém com uma caixa de som, ouvindo funk proibidão e destruindo toda a magia do lugar.
Visite ao Museu do Amanhã, e caminhará pela Praça Mauá e pelo antigo píer, acossado pelo som que sai das caixas mantidas no volume máximo pelos vendedores ambulantes, barraqueiros e visitantes locais.
Percorra as ciclovias da Barra ou da Lagoa, e descobrirá que o fone de ouvido cada vez cede mais lugar ao som que ecoa do celular.
Se aventure até o Parque da Cidade, em Niterói (ok, aí já não estamos mais no âmbito dos cariocas, mas como a gente vai lá para desfrutar da melhor vista do Rio, acho que tá valendo). Recuperado do impacto do gradiente de azuis das montanhas ao fundo, vem o choque sonoro: alguém liga uma caixa de som.
Nem falo da Quinta da Boa Vista, onde as caixas de som parecem remontar aos tempos do Imperador, e criam uma sinfonia cacofônica (ou caco-sinfonia) só comparável à da Escadaria Selarón, à da Lapa, à da Pedra do Sal.
Cariocas são sabidos
Cariocas conhecem o Nirvana
Cariocas vivem à paisana
Cariocas são abusados
Cariocas não sabem o que é inverno
Cariocas são papo reto
Cariocas gostam de impor suas escolhas musicais a quem está ao lado.
A métrica pode não ter ficado lá essas coisas. Mas pelo menos o escopo foi atualizado.