Nesses quase 34 anos de projeto Manguezal da Lagoa, pude acompanhar a morte e o renascimento do ecossistema da Lagoa algumas vezes.
No final dos anos 80, iniciei, por conta própria, a naturalização das margens da Lagoa.
Era considerado maluco: como plantar um manguezal na Lagoa?… Vai trazer mosquito, diziam uns; outros, que a Lagoa iria feder! Chegaram ao extremo de afirmar que os manguezais invadiriam o espelho d’água! Outra suposta polêmica era que nunca teriam existido manguezais na Lagoa. Engraçado é que também nunca ninguém se esforçou em buscar, no periódico “Memórias do Instituto Oswaldo Cruz” — do limnólogo Lejeune de Oliveria, seu trabalho de caracterização biológica da Lagoa da década de 30/40 —, onde ele afirma a pretérita existência dos “manguesais” na região. Triste mesmo é saber que até alguns biólogos desconhecem e continuam falando e repassando para seus alunos e alunas uma informação que não diz respeito à realidade histórica da Lagoa. No entanto, com o tempo, isso vai sendo corrigido, e as bobagens e preconceitos, sepultados.
Vale destacar que, naqueles últimos 100 anos, seu corpo d’água havia encolhido quase em 50% de sua área original. Em aterros consecutivos, o espelho d’água e demais ecossistemas perilagunares, tais como manguezais e brejos, foram sumariamente suprimidos pelos mais variados motivos.
Fato é que, depois dos inúmeros aterros, vieram os lançamentos indiscriminados de esgoto, que transformaram suas águas em latrina e depósito periódico de centenas de toneladas de peixes mortos.
Já fazia parte da paisagem que, a cada entrada de frente fria mais intensa, milhares de peixes aparecessem mortos.
As autoridades já dispunham de notas protocolares oficiais prontas para justificar mais aquela enésima mortandade em que, no final das contas, a vítima acabava sendo a principal culpada, isto é, a Natureza.
Particularmente, nunca entrei nessa “narrativa oficial”. Com o desenvolver do projeto Manguezal da Lagoa, constatei que o sistema de águas pluviais fazia parte, quase que permanente, do suposto tratamento de esgoto que era pago, mas que funcionava de forma precaríssima.
Foram três décadas de confrontos permanentes com quem cobrava, recebia, dava lucro e prestava um serviço de péssima qualidade, no qual, não raramente, conforme o arranjo político do momento do confronto, eu me via quase que sozinho, enfrentando as diferentes esferas do Executivo, pois, afinal, quem dá lucro não pode ser questionado em colônias de exploração.
Enquanto os confrontos eram permanentes na área de saneamento, a naturalização das atuais margens da Lagoa ia avançando com apoios que oscilavam dos privados, oficiais e pessoais, conforme o período.
As grandes mortandades do início do atual século promoveram a quase ausente cidadania ativa da sociedade que abraçou a Lagoa e exigiu das autoridades ações concretas para resolver o problema. Finalmente, o “milagre” aconteceu.
Só para ter uma ideia, quem faturava com o serviço de saneamento, de 1985 a 2000, havia investido menos de 1% do arrecadado nos bairros ao redor da Lagoa, em manutenção da rede de esgoto, sendo que a mesma tinha, em 51% de sua extensão, mais de 60 anos! Ou seja, um grande negócio, no qual quem pagava a conta era a Lagoa e a qualidade de vida dos moradores. Viram-se obrigados, por conta de um termo de ajuste de conduta, a fazer obras que, por vários anos, viabilizaram a melhoria da qualidade da água e a suspensão das mortandades.
Contudo, no Brasil, manutenção é uma blasfêmia, punível com sentenças variadas. E é claro que, depois de alguns anos, sem a devida manutenção dos equipamentos, os lançamentos de esgoto voltaram e, com eles, as mortandades.
Destaca-se que, independentemente dos apoios e dos lançamentos de esgoto com suas mortandades, a naturalização das margens da Lagoa incrementava, aos trancos e barrancos, a biodiversidade do ecossistema.
De forma silenciosa ou nem tanto, frangos d’água, aratus, chama-marés, marinheiros foram aos poucos retomando o que tinha sido seu, décadas atrás, antes dos aterros.
Nessa guerra pela Lagoa, a participação ativa e permanente da imprensa foi essencial. Sem ela, em tempos sem celular, sem wifi e outras facilidades atuais, as batalhas travadas teriam sido invencíveis contra a máquina de versões oficiais.
No caso da Lagoa, fui contactado pela Águas do Rio, que se disse interessada em tornar a Lagoa um exemplo em termos de qualidade e recuperação ambiental.
Depois de algumas conversas, ficou acertado o apoio ao projeto Manguezal da Lagoa, bem como um trabalho articulado entre nossa equipe e a da empresa em relação aos potenciais lançamentos de esgoto.
Em quase dois anos de parceria, o que era considerado impossível décadas atrás tornou-se realidade. Águas translúcidas têm permitido não apenas a explosão da biodiversidade, com a presença de colhereiros, garças- azuis, guaraúnas, saracuras, guaimuns e tantas outras espécies, como também, até, caça submarina, atividade apenas viável quando há suficiente transparência na água e principalmente peixe.
A Lagoa, hoje, na cidade do Rio de Janeiro, é um paciente em plena recuperação. Mais do que isso, é um exemplo claro de que ecossistemas historicamente degradados, tidos oficialmente como irrecuperáveis por “experts” e autoridades, podem, sim, ser recuperados, isso servindo para as Baías de Guanabara e Sepetiba, como também para o sistema lagunar de Jacarepaguá. Não há mágica tampouco salvadores do ambiente — apenas, trabalho sério e contínuo.
A Lagoa, como nossa saúde, sempre precisará de atenção, pois ela é naturalmente um ecossistema vulnerável. Portanto, não há nunca como baixar a guarda, sendo a qualidade dos serviços de saneamento e o monitoramento instrumentos essenciais para a tomada de medidas preventivas contra os potenciais desequilíbrios ambientais que sempre poderão ocorrer no ecossistema.
Olho para trás, penso nos desafios enfrentados em defesa dos manguezais da Baía de Ilha Grande e dos graves problemas pessoais e profissionais que me trouxeram: a fuga do Brasil, a naturalização das margens da Lagoa… Hoje, ouço que fui um visionário!
De doido a visionário, foi um longo caminho que, de certa forma, mostra que a trilha da defesa do ambiente — num país que ainda pensa e age como colônia de exploração em pleno século XXI — exige amor, persistência, coragem e uma pitada de loucura dos que se aventuram nela, pois, se parar para pensar, quem ousa pensar acaba não fazendo coisa alguma diante dos inimigos a enfrentar.
Prazer e amor pelo que se faz são essenciais, matérias-primas para amantes firmes no desejo de recuperar e proteger, entendendo que dependemos diretamente do que insistimos em destruir e/ou deixar que destruam como sociedade, quase numa ação suicida.
Numa tarde fria de outubro de 1989, uma tainha pulando, grama de mangue, conchas de unha-de-velho na margem da Lagoa… Para mim, esses foram os sinais de que era hora de a Lagoa renascer. Eu estava lá e ouvi o chamado!
Deu no que deu.
Esse texto é dirigido, principalmente, a quem estuda ou deseja atuar na área ambiental e se aventura nesse caminho tortuoso e perigoso do qual toda a humanidade depende para continuar existindo.