Muito se fala do machismo estrutural da língua portuguesa: o Sol, estrela 110 vezes maior que a Terra, é do gênero masculino; a Lua, satélite 13 vezes menor que a Terra, é do gênero feminino. O jantar (masculino) é chiquérrimo; a janta (feminino) é o que sobrou do almoço. O tesouro (masculino) é valioso; a tesoura (feminino), trabalhadora braçal. O plural, mesmo havendo homens e mulheres, é no masculino.
Muito se fala também do racismo, igualmente estrutural, que permeia nosso idioma. Uma pessoa inteligente é “esclarecida”; uma coisa difícil de compreender é “obscura”. Quando se acerta, foi “no alvo”; quando se atira a esmo, “um tiro no escuro”. “Deu um branco” é uma coisa horrível, e “grana preta”, uma coisa ótima — mas isso é a exceção que confirma a regra.
O que ninguém ainda parece ter percebido é o quão religiosamente preconceituosa a língua portuguesa consegue ser. Símbolos cristãos estão por toda parte no idioma — enquanto os de outras religiões são ignorados.
A cruz é quase onipresente. Já esteve no nosso bolso, em forma de cruzeiros e cruzados. A Marinha tem cruzadores e a matemática usa como símbolo de adição uma cruzinha. Os jornais têm palavras cruzadas – e olhe na página de esportes: lá estão os cruzeirenses, os cruz-maltinos, e, se houver luta de boxe, os cruzados de direita. O símbolo do cristianismo está, ainda, nos cruzamentos das ruas, nas cruzas de animais, nos navios de cruzeiro, nos bordados em ponto cruz, e até nos sustos (“Cruz credo!”).
Onde ficam o crescente, a estrela de David, o dharmachakra, o yin e o yang, o Om?
Ao dizer que o pudim de leite estava divino, você está perpetuando o preconceito contra os ateus. Se quer usar uma linguagem mais inclusiva, diga que o pudim está copérnico ou darwiniano, por exemplo.
“Chá de limão é um santo remédio”. Olhaí o preconceito contra os evangélicos! Diga que é um profeta remédio, e estará irmanando cristãos, judeus e muçulmanos.
“Ficar trabalhando num dia lindo desses é um pecado!”. Por que essa zenbudistofobia?
Todo mundo, ao se despedir, diz “adeus”, não “aalá”, “ajeová”, “axangô”, “atupã”.
E vejam quanta gente canta à capela – mas ninguém canta à sinagoga, à mesquita ou ao terreiro de candomblé.
O livro sagrado dos muçulmanos é o Alcorão. O dos judeus, a Torá. O dos espíritas, O Evangelho segundo o Espiritismo. Os hindus têm o Mahabharata e o Bhagavad Gita. Os taoístas, o Tao Te Ching. Mas como é que se chama o lugar onde ficam guardados e catalogados os livros? Hein, hein?
Pois é: biblioteca.
Como se a Bíblia fosse “o livro” e os demais, um livro qualquer.
Como se chama a pessoa que ama livros? Não é taotechingófilo, mas bibliófilo.
A que tem mania de comprar e colecionar livros? Não é torámano, mas bibliômano.
A relação de obras citadas por um autor? Não, não é mahabharatagrafia, mas bibliografia.
Existe curso de Alcorãoconomia? Não, mas de Biblioteconomia, tem.
Aquela senhora de conjuntinho cinza, cabelo preso num coque, óculos de aros grossos e que fica pedindo silêncio e cobrando multa pela devolução dos livros fora do prazo, por acaso é uma oevangelhosegundooespiritismotecária? Não: é uma bibliotecária.
Você, militante atento/a/e às opressões linguísticas, que evita expressões de cunho racista e machista, fique alerta/o/e. Está cometendo intolerância vocabular contra espíritas, judeus, muçulmanos, hindus, taoístas, umbandistas, daimistas e, principalmente, ateus.
Se temos que mudar “criado mudo” para “mesinha de cabeceira” e passar a dizer “amigues”, é melhor se informar também sobre as demais formas de preconceito: o primeiro passo é estudar a respeito, de preferência começando a frequentar uma livroteca.
Afinal, o Estado é laico, né não?
P.S. Este texto contém ironia. Muita.
P.S.2. No caso de você realmente acreditar que “esclarecer” seja racista ou que “biblioteca” envolva preconceito religioso, um etimólogo deverá ser consultado.