A tragédia acompanha a vida humana. Entender o que a constitui é um desafio que deve ser enfrentado para saber o que deve ser feito e, com isso, evitar que ela se repita. Eventos, como o que ocorreu na creche de Blumenau, já foram sinalizados anteriormente, tanto pela Mitologia quanto pelas religiões e, mais recentemente, pela ciência.
Urano, por exemplo, casou com sua mãe, aprisionou os filhos e foi castrado por um deles. Cronos comia os filhos e foi destronado por um deles. Por vingança, Medeia matou seus dois filhos. A Bíblia narra histórias em que um irmão mata outro, vende o outro ou, ainda, se passa por outro para obter vantagens.
Todas essas histórias descrevem o esforço feito para mapear o que se passa dentro do coração humano, bem como o que precisaria ser feito para evitar tragédias. Temer a Deus? Temer a lei? Contar histórias que dão calafrios? Fato é que, mesmo com tudo isso, tanto Deus quanto a palavra ou a lei não foram suficientes para conter impulsos destrutivos. Eles continuaram existindo e deixando profundas marcas por onde passam.
Um homem jovem para sua moto ao lado de uma creche, mata quatro crianças, fere outras usando uma machadinha e depois se entrega à polícia. O motivo que o levou a cometer esse crime pode variar, mas o que chama atenção é o fato de terem sido crianças sem condições de se defender, mortas por um adulto dentro de um local onde estariam, em tese, protegidas e cuidadas. Além disso, o assassino usa como arma um objeto que já fez parte de antigas guerras. Depois de cometer o crime, ele se entrega a uma autoridade policial e se mantém calado.
Conhecer o que existe dentro de nós é fundamental para que não sejamos conduzidos pelo que em nós desconhecemos. Saber o que usamos para dizer quem somos, sejam pensamentos, sejam crenças, sejam sentimentos, é um primeiro passo para não sermos conduzidos por paixões que existem em nós e que desconhecemos. As possessões têm mais a ver com nossas paixões do que com os espíritos. Apesar de toda a evolução científica e tecnológica, deparamos com tragédias que já foram descritas nos tempos em que se acreditava que a Terra estava no centro do Universo.
Reprimir impulsos foi uma maneira de tentar conter o que, quando foi liberado, já não se sabia mais o que fazer com isso. Reprimir não resolveu; liberar também não. As sociedades humanas foram deixando de olhar em profundidade para a complexidade de muitas paixões humanas, sufocando-as com um amontoado de opiniões sem consistência ou nexo. Afinal, nos dias de hoje, o que em nós nos faz ser quem somos, a agir como agimos e a planejar o que planejamos?
Se classificarmos o assassino como doente mental, perderemos a chance de compreender o que essa tragédia nos mostra, e com isso, evitar deparar com a constatação: aconteceu novamente. Além das providências cabíveis nesse caso, não podemos esquecer que vivemos em uma sociedade que acredita a palavra ser soberana e o desejo, seu principal aliado. A questão é que a palavra surge em nossa vida só depois de alguns meses do nascimento. Contudo, sem estarmos vinculados a alguém que cuide de nós, morreremos no nascedouro. Vínculo é vida do qual a palavra se beneficiou. O assassino não disse uma palavra sobre os motivos que o levaram a cometer o crime, mas seu silêncio está sendo ouvido através do sofrimento dos pais das crianças, cuja dor pulsa sobre o vínculo com o filho perdido.
Sociedades que negligenciam sua responsabilidade em formar indivíduos que saibam construir vínculos sólidos, profundos e emocionalmente estáveis, tendem a favorecer a ocorrência de diferentes tipos de tragédias. Isso porque os indivíduos, sem saber o que fazer com os próprios sentimentos e pensamentos, bem como, sem ter recursos para elaborá-los, os transformam em atos. Isso não isenta de responsabilidade qualquer um por um crime cometido, mas indica uma direção para onde se deve olhar, cuidar e investir, se o que de fato se quer é uma sociedade com níveis cada vez menores de violência.
Sócrates Nolasco é psicólogo, membro Titular da Academia Brasileira de Filosofia e autor do livro recém-lançado “Amarás”.