“O prazer de comer vem de Deus” disse, certa vez, o papa Francisco. E foi de uma reflexão acerca dessa relação entre a comida e a Bíblia, em meio a uma agradável conversa com o então padre, hoje cardeal, dom Tolentino Mendonça, que veio a ideia de escrever esse livro, há mais de 10 anos. Estávamos na Casa de Chá de Santa Isabel, antiga Vicentinas, junto ao largo do Rato (Lisboa), provando os melhores scones do mundo, com manteiga e geleia. Desse encontro, surgiu a ideia de uma pesquisa mais ampla sobre todos os alimentos da Bíblia, por sugestão do meu marido, o escritor José Paulo Cavalcanti.
O desafio foi aceito por ambos — sem me dar conta, naquele momento, da responsabilidade, da extensão do trabalho e do tempo que consumiria. Não tenho formação teológica e nunca tinha lido a Bíblia antes! Ler e reler a Bíblia, anotando todas as referências sobre o tema, foi uma rotina diária: estudar os hábitos alimentares do povo hebreu nos diversos momentos de sua trajetória, no Antigo e no Novo Testamento.
“O Novo Testamento está oculto no Antigo, e o Antigo está patente no Novo”, segundo Santo Agostinho.’ Quase as mesmas palavras que estão na bula Dei Verbum (de Paulo VI, no Concílio Vaticano Il): “O Novo Testamento está latente no Antigo, e o Antigo está patente no Novo” (Novum in Vetere latet et in Novo Vetus patet), todos, com mensagens destinadas a preservar a fé.
Ao mergulhar profundamente nessa jornada bíblica, tomei um susto: os alimentos são citados em praticamente todas as páginas do Livro Sagrado (são muito raras as passagens que não tenham um versículo marcado). Depois de conferir cuidadosamente cada um desses versículos, para que eles estivessem no computador exatamente como estão na Bíblia, fiz uma seleção para cortar coisas que transmitiam a mesma ideia.
De toda essa pesquisa, dois pontos ficam para mim como aprendizagem e transformação: a fortíssima relação de Jesus com os alimentos e a importância simbólica da mesa como lugar de partilha e união. A força ritualística do ato de se alimentar na companhia do outro, a mesa como um lugar de união, de superação de diferenças. Isso porque Jesus compreendeu muito cedo que a mesa é um forte alicerce das sociedades, símbolo da comunhão. Então, ele pregou a inclusão de todos em volta da mesa e rompeu tradições antigas ao reunir, à mesma mesa, homens, mulheres, amigos, inimigos, ricos e mendigos, doentes e sãos, santos e pecadores. Juntou também o que parecia impossível: escribas, samaritanos, fariseus e publicanos.
E tantas foram as refeições com Jesus, defendidas no Novo Testamento, que disseram dele: “E veio o filho do homem, que come e bebe (…) dizem: eis aí um glutão a beber, amigo de publicanos e pecadores”.
Enfim, estudar os alimentos da Bíblia, em todos os seus períodos e em todas as suas diversas situações, desde o tempo em que aquele povo estava exilado em terras distantes, depois na sua própria terra e então dominado por outros povos, em tempos de guerra, em tempos de paz, enquanto nômades, enquanto residentes, em casas comuns ou em palácios, nas refeições simples ou em refeições suntuosas, como nos banquetes, todos eles se alimentavam da mesma maneira. Todos tinham os mesmos hábitos alimentares porque todos obedeciam às mesmas regras.
Noto então, estudando esses alimentos, estudando essas receitas que, sem dúvida, são fontes, são indícios que nos revelam tradições, que nos revelam costumes, crenças também, que determinam comportamentos, preferências e que reforçam gestos de perdão, de hospitalidade, de amizade, com o belo exemplo de Jesus. A mesa seria então o símbolo maior de inclusão, de amor e de união ensinada por Ele. Assim é, ou assim deveria ser vista, a mesa de Deus. Por isso o nome do livro não poderia ser outro.
Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti é escritora, pesquisadora gastronômica, faz parte da Academia Pernambucana de Letras (cadeira 23) e é autora dos livros A Mesa de Deus: os alimentos da Bíblia (recém-lançado), Açúcar no tacho (2007), O negro açúcar (2008), História dos sabores pernambucanos (2009), Esses pratos maravilhosos e seus nomes esquisitos (2013), Gilberto Freyre e as aventuras do paladar (2013).