“Dona Myrian” — todos a tratam assim (espectadores, artistas, funcionários e até os filhos) ao falarem ou se referirem a ela diretamente em uma conversa. É um sinal espontâneo de respeito e gratidão a quem, nos últimos 40 anos, tornou mais ricas a vida de quem trabalha com ela e, sobretudo, de quem ama música clássica ou balé. A lista dos artistas que Myrian Dauelsberg trouxe para se apresentarem em todas as cinco regiões do Brasil – a partir do Rio de Janeiro, cidade-sede de sua produtora, a Dellarte Soluções Culturais – equivale a um dicionário quase completo de intérpretes, orquestras e companhias ativas no mundo nas últimas quatro décadas.
Pense num nome. Luciano Pavarotti? O mais famoso tenor da história se apresentou no estádio do Pacaembu, em 1991, graças a dona Myrian. No ano anterior, ele, Plácido Domingo e José Carreras haviam enfeitiçado Roma, lançando a febre dos Três Tenores; os outros dois logo também viriam ao Brasil pela Dellarte… Yuja Wang? A sensação chinesa do piano tocou no Brasil em 2018, graças a dona Myrian. No ano seguinte, Yuja ganharia o seu segundo prêmio da revista inglesa Gramophone, pelo álbum The Berlin Recital.
São mais de 5.000 eventos realizados pela Dellarte desde sua fundação, em 1982. Sim, a pandemia adiou em um ano a presente comemoração de 40 anos, mas não provocou nenhuma demissão entre os seus 34 funcionários. Na verdade, o destino de dona Myrian estava traçado desde a maternidade. A mãe era a violinista Mariuccia Iacovino, cuja longeva carreira profissional a inscreveu no Guinness Book of Records antes de morrer, aos 95 anos. O pai, o engenheiro civil Bruno Lucci, morreu quando Myrian e a irmã, Eliana, eram crianças. Mariuccia casou-se novamente com o pianista Arnaldo Estrella, guru dos compositores brasileiros pela facilidade ao ler partituras.
A família, então, estabeleceu-se em Paris. Sua casa tornou-se uma embaixada extraoficial para artistas, como os pintores Portinari e Di Cavalcanti. O compositor Heitor Villa-Lobos também aparecia com frequência. “Não resistia ao ensopadinho e ao tutu de feijão da minha mãe”, ri dona Myrian, que herdou o gosto pela promoção de jantares. Nelson Freire era fã do cuscuz à paulista. Em Paris, os filósofos Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre também frequentavam a residência da pequena Myrian. “Essas convivências foram formando meu grau de exigência”, lembra. “Uma das minhas mentoras, a violinista Hélène Jourdan-Morhange, tinha sido amiga de Ravel!”
Concluído no Conservatório em Paris o doutorado no Conservatório de Paris em Musicologia na Sorbonne, dona Myrian voltou ao Rio, casada com um colega, o violoncelista alemão Peter Dauelsberg, e começou a dar concorridas aulas de piano, das quais emergiram talentos como Sérgio Monteiro e Sylvia Thereza, e intensificou sua atividade didática, concorridas na proporção da paixão da professora: é a sua atividade mais querida.
No começo da década de 1970, o pianista Jacques Klein convidou-a para ser diretora artística da Sala Cecília Meireles, onde permaneceu seis anos, montando programações de alto nível que driblavam verbas baixas para formar novos públicos. Entre 1979 e 1980, enquanto o escritor Eduardo Portella esteve ministro da Educação, Cultura e Desportos, dona Myrian foi sua chefe de gabinete, criando comissões que agilizavam a volta dos cassados pela ditadura.
Na volta de Brasília, fundou a Dellarte no apartamento dos Dauelsberg, em Laranjeiras. Na atual sede, salas envidraçadas em um prédio de escritórios, na Praia do Flamengo, o único problema é a falta de paredes para pendurar lembranças de nem sequer uma fração das atrações trazidas ao Brasil, todas com dedicatórias afetuosas.
Uma fotografia que aguarda um prego é a dos violonistas Al Di Meola, John McLaughlin e Paco de Lucía; está autografada pelos dois últimos. De Lucía desenhou chifrinhos na cabeça de Meola, com quem brigou (no braço!) e que abandonou o supertrio de jazz-flamenco logo antes da turnê chegar ao Brasil. “O jazz é mérito do Cláudio e do Steffen”, explica dona Myrian”. O filho caçula, Cláudio Dauelsberg, pianista e professor da UniRrio, idealizou os Festivais de Inverno na Região Serrana do Rio e é o curador nas séries de jazz.
Já o economista Steffen Dauelsberg, diretor-executivo da Dellarte, é o único da família sem ter ido a fundo na formação musical. Mesmo assim, graças a seu perene fascínio pelo álbum The Köln Concert, o pianista americano Keith Jarrett foi trazido quatro vezes; a de 2011, no Theatro Municipal, foi registrada no álbum duplo Rio. Jarrett também acrescentou “causos” ao folclore da empresa, porque todo evento tem a face vista pelo público e a vivida pelos produtores. No caso de Jarrett, distribuição de pastilhas para garganta na tentativa de impedir a plateia de tossir. Na segunda visita, a encarregada de buscá-lo no aeroporto foi a própria dona Myrian, cheia de dedos por não ser do jazz. “Vou puxar esse artista para a minha área”, pensou. Deu certo. Encontraram-se em Bach, de quem Jarrett tinha acabado de gravar o primeiro livro de “O cravo”, bem temperado. Quando o filho chegou ao hotel em São Conrado, encontrou a mãe e o ídolo sentados no chão do saguão, ouvindo as fitas (de rolo) do álbum ainda inédito. “Dona Myrian é uma escola”, diz Steffen. “A sorte protege aqueles que ousam”, ela costuma citar esta frase de Virgilio.
O charme de dona Myrian é tão famoso quanto a sensibilidade, a persistência e a rede de contatos; outra recepção engraçada foi a de Rostropovich. O genial violoncelista chegou ao Brasil no domingo da final da Copa do Mundo de 1994, entre Brasil e Itália, decidida nos pênaltis. Ao estranhar as ruas vazias, pediu a bandeira nacional. Na terça-feira, levou-a ao palco para fazer média com a plateia que acabara de se tornar tetracampeã. “Um demagogo!”, ri dona Myrian.
A sua relação com a Rússia demanda dois parágrafos à parte. A primeira turnê produzida pela Dellarte foi a da Orquestra de Câmara de Moscou. Em 1982. Quando o Brasil estava sob ditadura militar, o Muro de Berlim seguia de pé, e a URSS parecia inabalável. “Eu tinha a coragem da inconsciência, mais inconsciência do que coragem”, relativiza. Dona Myrian superou a burocracia e a desconfiança recíprocas. Fez os músicos derreterem de Porto Alegre a Manaus. Teve o apoio de Roberto Marinho, dono do jornal O Globo, que entendeu o prestígio de trazer artistas soviéticos, e a fez prometer que a recém-lançada série de concertos duraria “ao menos três anos”. A Série O Globo/Dellarte Concertos Internacionais está completando 28 anos em 2023.
Na ponte aérea Moscou-Rio, os anos trouxeram ao Brasil as filarmônicas de Moscou e de São Petersburgo, os pianistas Sergei Dorensky, Denis Matsuev, Lilya Zilberstein, Nikolai Lugansky, Anna Malikova, alguns antes de se tornarem estrelas. E, como a música clássica russa é praticamente indissociável do balé, também vieram os dos teatros Bolshoi, Kirov e também o Mariinsky. A confiança é tamanha que, em 1998, o Mariinsky convidou a Dellarte para produzir-lhe uma turnê. Na vizinha Finlândia, cuja capital é Helsinque, fica a somente 389 quilômetros da sede do balé, em São Petersburgo.
Outro caso de paixão artística na área da dança foi o de dona Myrian e Antonio Gades, coreógrafo de flamenco. Quando contratou Gades pela primeira vez, ela passou por Madri, a caminho de Moscou. Viraram amigos de infância, distraíram-se, e o cachorro do coreógrafo destruiu o passaporte e o visto russo de dona Myriam. No correr das décadas, vieram pela Dellarte, entre outras, as companhias de Maurice Béjart, da Ópera de Paris, o Stomp, o Momix, New York City Ballet e Tokyo Ballet.
Essa paixão pela dança faz também que a Dellarte promova o Quebra-nozes de Tchaikovsky montado anualmente pela Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, associada ao Theatro Municipal do Rio. É apenas mais uma faceta da preocupação de dona Myrian e de Steffen de devolver à sociedade parte da expertise acumulada nos 40 anos da empresa. Outra é o apoio à Orquestra Sinfônica Mariuccia Iacovino, do maestro Jony William, sediada em Campos dos Goytacazes, e à Orquestra Sinfônica de Barra Mansa, promovendo o encontro de seus jovens músicos com grandes nomes como Yo-Yo Ma, Lang Lang, Gustavo Dudamel e o Balé do Bolshoi.
Por falar em futuro, Steffen é um entusiasta de novas tecnologias e inovação, desde que comprou o primeiro Macintosh (ainda ninguém tinha intimidade com o computador da Apple para chamá-lo de “Mac”). Ele vislumbrou a hoje modesta possibilidade de imprimir a laser as comunicações da Dellarte ao invés de datilografá-las. Vários de seus antigos monitores decoram a empresa. O fascínio de Steffen levou a Dellarte para a chamada Web 3.0, viabilizando a realização de instalações de arte e tecnologia – como Museum of me, Infusion e Jardim da Vida – nos CCBB-RJ/SP, BH e Brasília, Museu do Amanhã, MAC de Niterói, no MIS-SP e no Museu Gerdau, em Belo Horizonte. Talvez seja realmente adequado falar nos 40 anos da Dellarte como Dellarte 4.0.
Foto: AG. Globo
Arthur Dapieve é jornalista, professor, escritor e crítico musical. Frequentador assíduo dos concertos da Dellarte desde o início e, por isso, foi convidado pela família Dauelsberg para escrever esse texto. A festa de 40 anos será na quinta (27/04), às 20h, no Theatro Municipal, com o “Concerto Dellarte 40 Anos”.