Acho que falar da minha pessoa é falar em paradoxos. Nasci para quebrar tabus, criar tabus e, sobretudo, incomodar. Dona Rosália deu à luz todos os 18 filhos no extremo sul da Bahia — uma roça situada numa terra sem lei, nos arredores de Itamaraju. E eu fui a última dentre as 18 gravidezes absurdas de Dona Rosália. Acredito que toda gravidez seja absurda porque hoje sou mãe. Dessa forma, vou corrigir o adjetivo “absurdas” relacionado às gestações da minha mãe. Elas foram altamente desumanizadas pelo coronelismo regente naquela região, entre as décadas de 1960 e 1980.
Nenhum de nós nasceu em hospital. Quando podíamos contar com a sorte, vínhamos ao mundo sob os cuidados de uma parteira, que foi o meu caso. Contudo, inúmeros dos meus irmãos nasceram nas brenhas da mata. Dona Rosália entrava em trabalho de parto, enquanto capinava na roça; daí era preciso deixar a enxada cair ao chão e segurar o filho, pois, naquele momento, este seria mais relevante que aquela. E, assim, foram criados os meus irmãos. É importante ressaltar que nasci em 1984. Tive a “sorte” de crescer na cidade de Teixeira de Freitas — em uma espécie de escravidão legítima e legalizada.
Desse modo, sobreviver em Teixeira de Freitas era basicamente impossível. Sonhar, então, era uma audácia absurda, digna de castigo. E acho que nasci com a obrigação pessoal de nunca me calar, embora isso sempre revolte aqueles que acreditam ser os subalternos excluídos do direito à voz. Sempre fui demasiadamente crítica e questionadora; então, abandonei os coronéis de chapéus em Teixeira e fui me aventurar com os coronéis de Rolex em São Paulo, aos 13 anos de idade. Os castigos? Ah, estou até hoje tentando livrar-me dessa dívida farsante! Contudo, sempre tive a minha intelectualidade negada. As pessoas me veem como diva, musa, deusa; o oposto disso seria a “pobre coitada”. Por muito tempo, eu me senti na obrigação de carregar esses rótulos mutiladores, mas tudo em mim é uma mentira. Eu mal consigo me manter uma mortal digna de carregar o próprio caráter. Vim com o objetivo de encerrar esse ciclo de gravidezes, bebês e amamentações da minha mãe, o que era um ritual de muitas mulheres naquela época, que se encontravam em estado de total miséria social — tendo a maternidade como cruz e única profissão possível. Não que a maternidade tenha deixado de ser uma profissão, no entanto, diferentemente da minha mãe, eu pude escolher ser mãe ou não.
Hoje, a gente se preocupa com os sinais de envelhecimento, tem que esticar a cara toda para ter o direito de “envelhecer bem”. No tempo da minha mãe, as mulheres sonhavam com a conquista de envelhecer, pois assim não teriam outros filhos. E, quando de fato envelheciam, já não sabiam o que fazer com aquela liberdade medíocre. O que faz uma mulher que passou a vida parindo, quando não pode mais exercer essa função? É descabido pensar que minha mãe havia passado mais de metade da vida grávida e em processo de pós-parto, quando, aos seus 42 anos, a filha rebelde nasceu.
Sim, eu vim para produzir, embasada no ódio que sou obrigada a carregar — a possibilidade de ser simplesmente Lília Refle —, filha de ninguém, mulher de ninguém e, sobretudo, alguém que nunca pediu esmolas, mas roubou descaradamente, incontáveis vezes. O roubo mais perigoso foi a escolha de escrever o próprio destino.
Fui modelo na adolescência; esse foi o impulso da minha mudança para São Paulo. Não por querer ser um manequim vivo, mas por acreditar ser aquela caricatura de humanidade melhor que a fome — de algum modo, foi. Larguei aquela profissão subdesenvolvida para estudar, aos 17 anos. Então, abandonei a grande São Paulo e finquei pé em Ipanema. E, entre o Jornalismo e a Moda, fui estilista e produtora por muitos anos. Contudo, minha alma murchou a um ponto que me vi na obrigação de cessar com o trabalho no mundo da moda, pois cheguei à conclusão de que a moda é o artigo de luxo mais acessível, portanto, também o mais excludente. E como poderia eu ser ferramenta de exclusão se eu mesma nunca havia sido incluída?
Então, parei tudo e fiquei quatro anos ocupando-me, única e intensivamente, com os estudos da língua alemã. Estudava cerca de oito horas por dia; daí, a entrada no ramo da tradução. Logo depois, vi-me cursando Letras na PUC-Rio. E, finalmente, descobri uma profissão com a qual me realizo; alimento-me da minha espiritualidade apesar de ser ateia. Contudo, isso não tem absolutamente nada a ver com tornar-me escritora — eu já fabulava, mesmo antes de ser alfabetizada. Confundia a realidade com as questões contidas unicamente na minha imaginação lúdica. A PUC até oferece um curso chamado Formação de Escritores, o que acho bem sugestivo. Ninguém pode decidir tornar-se ou não capaz de escrever Literatura. Se eu pudesse, faria um curso de “Desformação de Escritor”. Minha escrita é um karma; vem das maiores cargas que carrego na alma.
Se eu me sinto realizada com ela? Obviamente que sim! No entanto, se pudesse livrar-me dessa minha obrigação de escravizar-me na escrita, gostaria de ser historiadora. Mas o fato é que tenho muito orgulho da minha trajetória, pois eu poderia estar escravizada lá em Teixeira de Freitas, passando toalhas brancas para eventos da branquitude e ganhando cerca de 20 reais por dia — exatamente como eu fazia aos 11 anos de idade. Mas, não, eu estou produzindo alta Literatura. Dessa forma, é importante ressaltar que reneguei a deusa e a esmola, por isso, nasci com esse tom de estontear o que está certo. Nunca bati à porta — quebro-a a pontapés.
Não acreditei em fadas madrinhas nem na infância, e não pedi esmola nem quando passei fatidicamente fome. Não é agora que pedirei; tem que me aceitar e ponto. Não nasci com o dom da autoanulação, portanto, nem deusa, nem diva, nem ‘esmoler’, e nem “A puta religiosa”, que dá título ao meu novo romance — apenas uma intelectual lutando pela sua legitimação, como qualquer outra intelectual. Com a mera diferença de ter passado fome e carregar para sempre essa ideologia de sub-raças — o que mais nos difere das outras espécies, já que nenhum burro quer ser mais burro que o seu semelhante. Não creio em superioridade, em nenhum dos graus desse substantivo tão cruel e complexo. Dessa forma, é necessário que eu afirme a indevida existência de uma sociedade moldada na hierarquia de classe e no racismo estrutural e as tatuagens sangrentas que ela vem inserindo, historicamente, em nossas almas.
Lilia Refle é escritora, tradutora de português/alemão, formanda em Letras na PUC-Rio. Autora dos romances: “Inquieta”, “Primeiro amor” e o polêmico “A puta religiosa”.