Desisti do jornalismo antes que meu lado masoquista desse asas à psicopatia. E desisti do Brasil porque o narcisismo nacional não é compatível com a minha vaidade emocional. Tenho pânico da nostalgia; por isso vou logo virar a página para não me estender no processo que me levou a largar a carreira. Mas para não deixar passar em branco, vou abusar do meu poder de síntese: redações tornaram-se ambientes tóxicos e sem humor, onde a criatividade e a liberdade de expressão deram lugar a textos sob encomenda e pautas aprovadas em troca de um anúncio de sapato mal costurado ou uma viagem para Bariloche que a editora de viagem e turismo “cavou”. Ao dar adeus às redações, despedi-me também da máscara que vesti por 25 anos para me defender e parti para o ataque num front minado de abusos morais de chefes e homofobia por parte dos “coleguinhas” de profissão.
Em 2018, voltei à universidade para realizar o sonho de me tornar psicólogo. Entrei em sala de aula aos 43 anos, com um plus em relação aos outros alunos, todos infinitamente mais jovens: todo o veneno que tinha estava pronto para virar antídoto. Sartre disse uma vez que “não importa o que fizeram com você, mas o que você faz com aquilo que fizeram com você”. Em dezembro de 2022, me formei com especialização em Psicoterapia Somática pelo CPSB de Lisboa. E para não jogar fora tudo o que fiz e aprendi nos meus 25 anos de carreira como jornalista e escritor, decidi criar um projeto que une duas profissões quase irmãs. A única diferença é que, como repórter, você pergunta apenas o que quer ouvir e, como terapeuta, você ouve tudo o que não quer (mas acolhe).
Em janeiro deste ano, fundei a Anima com o intuito de conversar livre e abertamente com marcas, empresas e famílias sobre saúde mental, sem tecnicidades, verdades absolutas ou viagens sobrenaturais, rumo ao autoconhecimento. Faço encontros presenciais ou online para tratar de temas tão presentes e urgentes no cotidiano — burnout, traumas de simbiose, medo e ansiedade, depressão no capitalismo, traços de caráter, entre outros —, de maneira menos hospitalocêntrica ou egocêntrica e mais a partir de um aspecto coletivo, em que cada um, ao saber de si, aprende a deixar o outro livre para encontrar o seu próprio eu. Ao depararmos com o desconforto de nossa própria presença, temos uma chance de ouro de ser quem realmente queremos, e não o que esperam de nós.
Com Anima, a missão é conjunta — do lado de cá e do lado de lá, desconstruirmos o ego em adulto, desde que exista algo sólido firmado e fundado no passado. E massagear o corpo egoico de forma consciente, sabendo que somos diferentes e únicos, não importa o padrão estabelecido, é das tarefas mais saudáveis que se pode fazer em vida – deveria ser tão banal e relaxante quanto sexo casual. Falar de traumas, amores e positividade tóxica requer responsabilidade e estudo; visitar a própria sombra e trazer à consciência a vulnerabilidade não é pauta de coach ou guru espiritual em surtos disfarçados de insight, tampouco deve ser privilégio de quem possui capital financeiro para se meter em retiros em busca de uma resposta telúrica. E antes de pretender chegar ao divino, é preciso libertar-se do falso self, do narcísico que há em nós. A pauta é colocar os pés no chão e as mãos na cabeça para, então, desprender-se da epiderme e entrar em contato com a essência.
Hermés Galvão é jornalista formado pela PUC Rio e psicoterapeuta licenciado pelo CPSB de Lisboa. Vive desde 2017 na capital portuguesa, tendo antes sobrevivido a um período de hedonismo setentista em Barcelona e um relacionamento tóxico em Paris. No Brasil, escreveu matérias nunca lidas para revistas, blogs e jornais de grande relevância para quase ninguém. É feliz.