No tempo em que telefone era fixo, ali por volta do Antigo Testamento, costumava-se dizer que homens eram de Marte e mulheres eram de Vênus.
[Nota mental para outro texto: Aqueles eram tempos paradoxais — o telefone era fixo, mas ficava em cima de um… móvel. Vá entender.]
Ninguém levava ao pé da letra aquilo de homens e mulheres serem de mundos diferentes porque, mesmo sem entender de metáfora, todo mundo sabia que era uma metáfora. E ainda que não entendesse nada de mitologia [Nota mental 2: A mitologia está para os deuses mortos assim como a religião está para os deuses que ainda não morreram], a pessoa entendia, sem problematizar.
Marte era o deus da guerra, e o planeta — vermelho como sangue — herdou-lhe o nome. A Marte também devemos as artes marciais, a corte marcial e, claro, os marcianos. [Nota mental 3: Os marcianos provavelmente são verdes para poder se destacar na paisagem do planeta vermelho; os marcianos vermelhos morreram todos atropelados, sem gerar descendência; Darwin explica.]
Vênus, por outro lado, era a deusa do amor e da beleza. Daí seu nome ser dado à bela Estrela D’Alva — a estrela matutina, que até madrugava, mas só depois se soube não ser uma estrela. Descobriu-se mais tarde que ela era a mesma Estrela Vésper, a estrela do crepúsculo — ainda bela e, apesar de estar na labuta desde a madrugada, tampouco tinha conseguido virar estrela.
A Vênus devemos o (já em desuso) verbo “venerar” (“Provar quero eu, que te quero / Venero teus olhos, teu porte, teu ser / Mas diga, tua ordem espero / Por ti não importa matar ou morrer”), os veneráveis (da maçonaria) e os venerandos (da Academia Brasileira de Letras). E mais: o monte de Vênus (outrora coberto de basta vegetação, hoje mais devastado que a Amazônia), a camisa de Vênus (que não preservou nada de sua poesia ao passar a se chamar preservativo) e as igualmente antigas (e todavia muito em uso) doenças venéreas. [Nota mental 4: Dar um jeito de encaixar os incas venusianos.]
Sentiram o machismo tóxico, a misoginia estrutural?
Como manter essa dicotomia numa época em que mulheres vão à luta e homens usam hidratante?
Homens podem até ser de Marte mesmo (os funkeiros e jogadores de futebol, cheios de penduricalhos, seriam de Saturno), mas mulheres são de onde elas quiserem (boa parte, inclusive, é assumidamente de Lua).
E as pessoas trans? Essas talvez sejam de Plutão — que era planeta, e deixou de ser (só continua sendo no horóscopo, esse reduto retrógrado como Mercúrio).
E os não-binários? Talvez sejam de Urano, que é um planeta que a gente não entende muito bem a que veio. E, que ainda por cima, anda na contramão (sim, ele gira em sentido contrário ao da Terra).
[Nota mental 4: Fazer de conta que esqueceu os de gênero fluido, ora masculino, ora feminino. As novas e complexas sexualidades demandam mais que um sistema solar basicão como o nosso. Precisamos olhar mais longe, ir além. Marte e Vênus, esquemáticos – ele, todo trabalhado no crosfite e na testosterona; ela, emergindo distraidamente sensual das águas de Botticelli — não mais nos definem. ]
Chega-se às estrelas por ásperos caminhos, já diziam os romanos. Imagine quanto cascalho haveremos de trilhar até chegar aos quasares, pulsares e buracos negros que haverão de nos espelhar, com mais precisão, no cosmos.
[Nota mental 5: Depois de certa idade, nem Marte nem Vênus — só antimatéria. Mas isso não é assunto para um domingo de manhã. Fica para quando esta coluna sair no sábado à noite. ]