Esta semana, um dos assuntos mais comentados na imprensa e nas redes sociais foi o samba. Não que Paulinho da Viola tenha gravado uma parceria inédita de Cartola e Noel Rosa, ou Zeca Pagodinho reabrisse o Canecão com um show inteiro dedicado a Nélson Cavaquinho.
Samba é o nome que o cantor Seu Jorge resolveu dar ao filho — e encontrou resistência no cartório. Sim, cartórios têm o poder de, legalmente, se recusar a registrar nomes que possam vir a constranger a criança. Como não há uma “Lista de Nomes Constrangedores”, certo grau de subjetividade permeia a decisão.
Seu Jorge insistiu, o cartório cedeu, e agora é pai de Samba.
Artistas têm certo pendor para a criatividade quando se trata de batizar a prole. E isso sempre vira notícia. Desde que Roberto Carlos tentou (em vão) que o filho se chamasse Roberto Carlos II. Desde que Baby e Pepeu produziram Kryshna Baby, Sarah Sheeva, Nãna Shara, Riroca e Zabelê. Ou Fábio Júnior teve Krízia e Záion. Ou Luana Piovani teve Dom e Bem.
Com Samba poderia ter sido apenas isso: estranhamento, menear de cabeça (“Ah, esse povo que mexe com arte…”) e bola pra frente. Isso se não estivéssemos imersos na Cultura do Vitimismo.
Torcer o nariz para Samba como nome próprio é racismo — pontificaram. Se Seu Jorge fosse branco ninguém falaria nada (mesmo qu batizasse a filha de Valsa, Sofrência ou Hully Gully, porque ele seria branco e os nomes seriam de ritmos brancos). Seu Jorge é vítima do racismo escancarado de quem achou estranho, e do racismo estrutural da sociedade, que deprecia tudo que não seja de origem europeia – essa é a falácia.
Na prática, Seu Jorge foi reduzido à sua origem étnica. Assim como teria sido reduzido à massa corporal se fosse gordo, à orientação sexual se fosse gay, à disforia de gênero se fosse trans.
Em “The rise of victmhood culture” (A ascensão da cultura do vitimismo), os sociólogos Bradley Campbell e Jason Manning falam de três estágios da cultura: o da honra, o da dignidade e o do vitimismo.
Na cultura da honra, ofensas são rebatidas de forma pessoal. Por meio de um duelo, por exemplo. Ou esperando lá fora, na saída da escola. Nas palavras do cientista político Adriano Gianturco (que tem um ótimo podcast e um tuíte a respeito), nessa cultura, “ser vítima e fraco é uma vergonha”.
Na cultura da dignidade — que veio, cronologicamente, depois — não se deixar atingir pelas ofensas é uma forma de superioridade. As diferenças não são resolvidas no tapa ou no tiro, mas pelos meios legais. A reação é civilizada.
Já na cultura da vitimização, “não há vergonha em ser vítima e fraco”. A fraqueza é ostentada, como sinal de virtude — e a vergonha recai sobre o agressor. A reação da vítima não é buscar justiça, mas promover o cancelamento, o linchamento virtual.
Essa cultura forma pessoas vulneráveis, para quem a opinião contrária — ou apenas diversa — virou microagressão. As vítimas carregam a nobreza do martírio.
Samba não é usual como nome próprio. Assim como não são Záion ou Zabelê. Mas Baby e Pepeu são brancos, Fábio Júnior é branco, então o estranhamento é só estranhamento mesmo. Fábio Júnior, Baby e Pepeu não são vítimas – são agentes, sujeitos. Já Seu Jorge — que já foi pai, sem problemas, de Luz, Flor e Aimée — é uma bandeira pedindo para ser desfraldada: preto, pobre (até se tornar famoso), longe dos padrões estéticos cultuados pela sociedade etc etc etc.
Tentar vitimizar Seu Jorge por suas escolhas — e não fazer o mesmo com pessoas brancas que tiveram, igualmente, escolhas singulares — é que é discriminação. E tentar culpar os que estranham coisas estranhas não é mais que querer se colocar em posição de supremacia moral.
O retorno à cultura da dignidade faria um bem danado à nossa civilização.