Está certíssima a primeira-dama Janja Lula da Silva quando, em momento após a barbárie, trouxe a ideia de um “memorial” que registre o radicalismo que destruiu nossa História. É preciso repetir para as futuras gerações o triste atentado que a democracia brasileira sofreu.
A lembrança de traumas, como o Holocausto ou as Torres Gêmeas, são reverberados em monumentos, para que não nos esqueçamos e possamos lutar para que isso não aconteça de novo. Mesmo assim, vê-se brotar atos de horror, num planeta pós-digital que deu voz aos que se acham eleitos de suas verdades inegociáveis. Destruir a memória, seja em Brasília, no Capitólio, no Afeganistão ou na Ucrânia, faz parte da imposição de suas crenças autocráticas enquanto defendem uma vã liberdade, irresponsável e arrogante, negando a roda da História.
Ao arruinar documentos, obras de arte, antiguidades preciosas e móveis “modernos”, que, pela inovação que trouxeram à época, já fazem parte da história mundial do design, os vândalos atingem o valor amplo da cultura. Em cada mesa, cadeira ou poltrona quebrada, foi vilipendiado o gênio brasileiro, o que de melhor o País produziu naquele momento histórico.
Os que financiam essa massa de manobra queriam atingir o coração do povo brasileiro, mesmo nas pessoas mais simples, pois a noção de pertencimento passa por um sentido geral de Pátria através desses símbolos, já que saber que belezas e tesouros também lhes pertencem pode ser um alento no dia a dia difícil da maior parte dos brasileiros. Ao quebrar a autoestima do povo, abrem espaço para fake news e negacionismos, criando narrativas que nós, suas vítimas, é que somos culpados.
Minha visão é que, num grupo tão belicista, tão afeito a armas de fogo, a ausência delas nos atos golpistas mostra que a ordem era vandalizar, e não confrontar, como em uma guerrilha. Isso daria aos mandantes a certeza de que quase nada de punição chegaria até eles, na ideia de que bens públicos não sensibilizam, nem autoridades nem a sociedade.
Mas a resposta foi a vitória da civilização contra a barbárie.
De acordo com o relatório de perdas, alguns itens não poderiam ser restaurados, como o relógio do francês Balthazar Martinot. Como criador do IBLHA — Instituto Brasileiro de Legados, Heranças e Acervos Culturais, órgão da sociedade civil para cobrar a proteção de nossos patrimônios, fico feliz que, mesmo o Brasil tendo expertise para tal, se procure agora cooperação com outros países para restaurá-lo, na reafirmação de nosso apreço pela cultura, pela arte e pelas relações entre nações. Claro, há itens que talvez servissem ao propósito de ficar como testemunho, mas creio que as cenas de vandalismo em vídeos e fotos do que foi realmente perdido, tenham mais didática; por isso, espero que tudo seja restaurado. E que os culpados sejam revelados e punidos exemplarmente!
Talvez tão importante quanto o Memorial da Democracia Inabalada, seja a ideia da primeira-dama de reabrir o Palácio Alvorada para visitação pública, promovendo exposições de arte contemporânea. A proposta é transformadora, pois poderia falar de inclusão, gênero, questões ambientais, educação, pobreza, discriminação, violência e outros tópicos através do olhar dos artistas brasileiros, que pontificam no mundo, tanto quanto nossa música e futebol. É preciso diminuir essas distâncias – a arte é uma ferramenta poderosa; se assim não fosse, destruí-la não seria alvo.
Só um país que leva cultura a seu povo é que cria a base para uma democracia livre e sólida, que possa inibir pessoas de confundirem infâmia e glória e achem admissível destruir a História.
Alexandre Murucci é artista visual, com participação nas Bienais de Veneza, Cairo e Áustria. No momento está com uma individual na Galeria Mariantonia (USP). Também é curador, criador da TRIO Bienal, presidente do IBLHA e diretor de Cultura do Instituto Niemeyer.