Em 2023 não reclamo mais do barulho.
Tentarei uma nova abordagem, à la Polyanna, procurando ver (no caso, ouvir) o lado positivo.
Todo mundo assistiu à série “The White Lotus” embevecido com a magistral trilha sonora (que a Graci Almeida, muito acuradamente, definiu como “trilha de ritual canibal”) de Cristobal Tapia de Veer. Todo mundo, menos eu, que tive direito a música incidental exclusiva do MC Ryan: “Tubarão te amo”, no volume máximo vindo da churrasqueira, em boa parte dos episódios.
Gerou estranheza? Gerou. Os personagens discutindo seus “billionaire people problems” no Havaí, ao custo de US$ 29 mil a diária (uns R$ 150 mil, mais ou menos) — enquanto o MC se esganiçava com “Vou te chamar de amor e vou te pedir com carinho / Só pra ver você quicar / Quicar no escurinho”.
O contraste, a dissonância, a superposição de contextos culturais, o choque entre o que se via na tela e o que se ouvia aqui no condomínio, tudo isso deu outro caráter à obra do Mike White. Privilégio meu, por obra e graça da vizinhança que customiza todas as minhas séries e filmes com suas intervenções sonoras.
Também não reclamo mais da vizinha de cima. É injusto dizer que ela arraste móveis o dia inteiro: é apenas das 7h45 da manhã às 23h15, 23h30. No máximo. Dificilmente passa da meia-noite.
Tentarei pensar que, na verdade, não há vizinha alguma. O apartamento está desocupado. O último morador equipou-o com mesas de mogno e tampo de granito, guarda-roupas de jacarandá, fogão industrial, freezer de frigorífico, pintou o alfabeto no chão e transformou o imóvel num enorme tabuleiro Ouija.
As vogais ficam na sala; as consoantes, na suíte principal; acentos e pontuação, na suíte de hóspedes (equivalente ao meu escritório). Na cozinha e no vestíbulo, estão algarismos e símbolos. Mal o primeiro raio de sol atravessa a varanda e toca a soleira da porta, começam a chegar as mensagens do Além. E lá vai a mesa de mogno para o quarto, o guarda-roupa para o vestíbulo, o freezer para o banheiro (onde não tem letra nenhuma, mas o freezer se tranca lá, para ver se tem um minuto de paz).
Quando chega a hora da troca de turno entre os vigilantes do dia e os da noite (sempre com muitos gritos e gargalhadas), cada móvel volta para o seu lugar, o freezer dá um suspiro e sai do banheiro, e outra enciclopédia terá sido psicografada. Como vou reclamar de um evento místico-literário desse porte?
Também não criticarei mais manchetes mal escritas. Tudo bem que isso talvez implique nunca mais poder ler jornais — ou ler e ter que rir sozinho —, mas, como diz o futuro presidente Lula em relação a inflação, recessão, descontrole, gastança… “paciência”.
A partir da meia-noite de 31 de dezembro, não criticarei mais o governo Bolsonaro. Não os novos atos do governo Bolsonaro, pelo menos (os antigos ainda merecerão alguns reparos).
Quem sabe assim tenha um ano mais leve, mais zen, mais relax. Com maior consumo de maracugina, passiflora, camomila, agomelatina, benzodiazepina, bupropiona, buspirona, citalopram, duloxetina, escitalopram, fluoxetina e água com açúcar, mas não se fazem mais pessoas polyannas como antigamente.