Um dos meus maiores temores é me tornar um velho implicante.
Do tipo que implica com manchete ambígua de jornal, com projeto de apartamento em que a porta do banheiro fica de frente para fogão, com crianças berrando no restaurante diante de pais nem aí. Com gente que se posta na porta do vagão do metrô bloqueando quem quer sair e quem quer entrar, com vizinhos que arrastam móveis non stop, com foguetório que assusta os cachorros, com a moça de maus bofes que fatia queijo no supermercado, com… Bem, acho que chega. Tenho feito o possível para não me tornar este tipo de pessoa.
Mas implicância é como calvície: não acontece de um dia para o outro. Quando a gente se dá conta, tem que usar boné (ou pior: boina!) para ir comprar pão de manhã, ou volta com o cocuruto em brasa. A coisa desanda fio a fio, quase imperceptivelmente. Por isso é bom estar atento aos primeiros sintomas. Até porque não há minoxidil para a ranzinzice. E quando se começa a reparar no excesso de cabelo das pessoas…
Outro receio é ficar invejoso. Tenho uma invídia desgraçada de quem não fica se comparando. Deve ser horrível.
Meus irmãos mais novos sempre tiveram um irmão mais velho — eu, não. Irmão mais velho é um misto de cobaia, boi de piranha, culpado de tudo e ombro amigo. Alguém que já estudou o que você está aprendendo e pode te ensinar o caminho das pedras. Alguém que já pegou sarampo, caxumba, catapora, operou de fimose, engasgou com apito, passou por nascimento de dentes, overdose de Melhoral Infantil, porre de Benadryl e seus pais já tiram tudo isso de letra, sendo bem mais eficientes e menos estabanados com você.
Só não digo que tivesse inveja dos meus irmãos mais novos porque inveja mesmo eu tinha era de quem era filho único. Se por um lado o filho único não tinha irmão mais velho, por outro tampouco tinha irmão mais novo — e pouca coisa provoca mais inveja que os privilégios de irmão mais novo. Colo, atenção, eterna cara de inocente, direito de fazer coisa errada, de dormir na cama dos pais, de fazer pirraça.
Talvez felicidade fosse algo como ser filho único, porém com um irmão mais velho e um irmão caçula. Sem, deusmelivre, me tornar um filho do meio.
É possível que eu tivesse alguma inveja (mas pouca) de personagens de filme e seriado americano. Porque eles tomavam água de torneira. Se tinha filtro de barro em filme americano — fosse em cima da pia, fosse numa prateleirinha de mármore no canto da cozinha — nunca vi. Tomar água de torneira era libertador: tinha torneira em qualquer lugar, o copo enchia rápido, não era necessário esperar escorrer aquele filetinho de nada que só servia para dar vontade de fazer xixi. Isso quando não tinham esquecido de encher a parte de cima do filtro, e aí era preciso aguentar a sede até que a água tivesse porejado, preguiçosamente, para a parte de baixo. E ai se precisasse antes lavar a vela — vela era uma coisa que toda semana ficava coberta de lama, e tinha que ser areada com açúcar.
Ninguém nunca lavava vela em filme americano. Nem usava água para engolir comprimido. E essa era uma inveja máster. Americano colocava o comprimido (ou os comprimidos, porque normalmente eram dois ou três) na palma da mão, abria a boca, jogava a cabeça para trás e engolia tudo. A seco. Como se fossem bolinhas se sagu, torrões de açúcar. Já os comprimidos daqui eram sólidos, implacáveis e insolúveis, com o dobro do diâmetro da garganta. O Coristina era praticamente uma roda de rolimã. Dava para monitorar seu trajeto pelo rastro de destruição que deixava na faringe, no esôfago.
Americano tinha abajur na mesa de cabeceira. Podia se deitar no claro e, só depois de já devidamente a salvo embaixo das cobertas, virar para o lado e apagar a luz. Eu, não. Tinha me pôr na ponta dos pés, alcançar o interruptor pera, pendurado no teto, premer o botão e disparar rumo à cama, no breu mais absoluto, que é o breu do medo. No meio dessa longa jornada entre o interruptor e o porto seguro, havia toda sorte de perigos: brinquedos esquecidos, sapatos jogados, um dos pés da cama e, eventualmente, o penico. Ou mesmo o monstro sem nome, que eu sentia erguer as garras para (sim, as garras desse monstro ticam boca) abocanhar meu pé.
Meu outro medo é ficar um desses velhos esquecidos. Começar a repetir as coisas. Contar os mesmos casos para as mesmas pessoas, que se entreolham com um misto de “que saco” e pena. E me tornar implicante. Com manchetes de jornal, crianças gritando, mau atendimento no supermercado. E (meusmelivre) ter inveja de quem ainda tem muito cabelo. Reparou como em filme americano todo mundo tem muito cabelo? Na hora de jogar a cabeça para trás para engolir (a seco!) sei lá quantos comprimidos, um bom topete faz uma diferença e tanto. Um dia ainda escrevo sobre isso.