A morte da escritora Nélida Piñon, 85 anos, em Lisboa, Portugal, noticiada pelo colunista Ancelmo Gois, é uma perda para o País e para o mundo, mais ainda para o Rio, que ela tanto amava, e para os cariocas, não só pelo seu talento literário, mas sobretudo pela pessoa amorosa. A Academia Brasileira de Letras(ABL) está providenciando o translado do corpo, que será velado no Petit Trianon.
Nélida foi presidente da ABL e recebeu os prêmios Princesa das Astúrias de Literatura e Jabuti de Crônica. Deixa de luto não só os grandes escritores, como ela, mas também os iniciantes, a quem dava um apoio generoso. Reproduzimos aqui uma entrevista, que sempre relíamos, como a mais bonita de todas neste formato, feita em 2012:
NA ÍNTEGRA:
Nélida Piñon tem talento, nome, admiradores… Porém, mais que isso, ela em o maior de todos os bens: a alegria — o que nunca passa despercebido a ninguém, por mais superficial que seja o contato. Para os que têm a sorte de ser seus amigos, o que dizer? E o vigor? Esse está ali, na mesma proporção do bom humor. Raciocínio rápido, que, em em muitas situações, lembra o Washington Olivetto, ou seja, faz parte do clube que parece ter as respostas na ponta da língua — do assunto mais banal ao mais profundo.
A escritora acaba de lançar “O livro das horas”, que, mais que uma biografia, junta suas memórias afetivas. São relatos da vida profissional — que começou no final dos anos 1950, quando publicou seus primeiros contos — e pessoal, com muitas histórias ao lado de outros tantos nomes da literatura. Nessa pequena entrevista para o “Invertida”, podemos dizer que algumas respostas foram “imortais”! Sua presença só dá graça, espontaneidade e inteligência à ABL.
UMA LOUCURA: Uma loucura é a paixão que aflora sem aviso. Menos mal, porém, que é um fulgurante desatino propenso a se extinguir depois de se carbonizar. Em geral, uma loucura que engendra a próxima. Loucuras na minha vida foram muitas, mas está tudo superado. Acaba que não estamos à altura das paixões vividas.
UMA ROUBADA: A vida esta cheia de tropeços. Aprendi, portanto, a converter o precioso tempo que perco em desvencilhar-me deles como modo de entender melhor quem somos. Não estou familiarizada com o conceito de roubadas. Nada me é roubado, a vida só me acrescenta.
UM PORRE: Um porre é ouvir quem me fala sem interrupção, como se o mundo gravitasse em torno de seus interesses. Aquele ser absolutamente indiferente em saber se, a despeito de seu egoísmo, ainda continuo viva ao seu lado. Tenho paixão pela lucidez. A lucidez também embriaga.
UMA FRUSTRAÇÃO: Convém aprender a ganhar e perder. Em geral, fora de uma situação radical, há sempre um equilíbrio nos favores e nos desfavores do cotidiano. Constato que o destino tem garras: arranha e sopra e que me cabe dar o bom combate de que dizia São Paulo. Ou acompanhar um refrão espanhol: quem resiste, ganha. Procuro não entronizar minhas frustrações, prefiro superá-las; por isso é que eu tenho esse bom humor, estou sempre indo adiante.
UM APAGÃO: Apagão tem a ver com a memória que não lhe fornece o que você necessita ou está a cobrar. Ou ainda agir de forma negligente, como se tivesse, sem querer, apagado todas as formas de cortesia. Qualquer apagão é sempre constrangedor. No fundo, o apagão desumaniza. Apagão é pior que falta de luz, é um corte de energia.
UMA SÍNDROME: Abusa-se do uso de “síndrome”. Qualquer dia vão lhe perguntar se você sofre da ‘síndrome da vida’.
UM INSUCESSO: Tenho uma nutrida lista de insucessos. Em conjunto, ou separadamente, eles me formam, contam a minha história…
UM IMPULSO: O impulso do amor, da generosidade. O impulso de me lançar à aventura como se tivesse asas, como se estivesse em todos os lugares ao mesmo tempo, como se frequentasse a casa alheia sem ser notada. Não para surpreender a mesquinharia do cotidiano, mas para constatar o esplendor de um simples prato de feijão e arroz comido com júbilo, com crença na vida.
UM MEDO: Tenho medo da dor, de não saber morrer com dignidade, de ferir o próximo quando pretendia enaltecê-lo. São infinitos medos, sobretudo o medo de não estar à altura da minha própria aprendizagem.
UMA IDEIA FIXA: Talvez a minha seja criar, inventar, dilatar minha visão do mundo.
UM DEFEITO: Mais vale que os demais respondam, acusem-me com o indicativo que ostenta o anel que eu própria ofereci. Posso dizer também que deixo para amanhã o que eu poderia fazer hoje.
UM DESPRAZER: Desprazer é a cultura da grosseria; o resto, deixa o povo inventar.
UMA PARANOIA: Só se for fictícia.
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