Nesse dia chuvoso e preguiçoso, resolvi dar uma carona para minha filhota ir à aula no alto do Horto. Esquecemos que estávamos atrasadas e fizemos todo o ritual da difícil saída de casa, sem nos apressar. Já no carro, ligamos o rádio e paramos no sinal demorado, que fica naquela parte meio esquisita e sem sentido, debaixo do viaduto de saída do Túnel Rebouças. De repente, duas crianças muito simpáticas nos ofereceram mariolas pela lateral do motorista.
Abri a janela e disse a elas que não tinha nenhum dinheirinho, só cartão, mas que também tinha outras coisas no carro que talvez pudessem lhes interessar. Alguns animais de plástico saltaram do fundo do porta-malas, acompanhados de uma Barbie Frozen e de uma Barbie Branca de Neve, esta parecia saída de noites sofridas da floresta, e, por fim, um xilofone.
A menina, maior do que o menino, visivelmente mais madura, de bochechas arredondadas e com um olhar bastante inteligente, agradeceu educadíssima. O menino, de uns 8 anos ou menos, só tinha olhos para o cavalo desbotado e já galopava com ele em algum lugar.
Gentilíssimo, deu uma última olhada e balançou com a cabeça, concordando com o agradecimento da irmã.
Foi aí que ela, a menina de olhar inteligente, respirou fundo e me disse:
— Posso pedir uma coisa para a senhora?
Sem pensar duas vezes, eu disse:
— Pode.
Ela continuou:
— A senhora tem livros em casa?
Nesse instante, uma flecha penetrou o meu peito, que sangrou de quente alegria, em uma emoção fundamental para alguém tão calejada por morar no Brasil. Só deu tempo de olhar pra minha filha, depois para as duas crianças e responder.
— Tenho. Até que horas vocês vão ficar aqui?
— Até mais ou menos 2.
— Tá bem. Me esperem que eu volto.
Dentro do carro, o pedido da menina amalgamou a encantadora cumplicidade de duas amantes da leitura. Sorrimos silenciosas até a Rua Lopes Quintas. Sabíamos o que tudo aquilo significava. No alto do Horto, já tínhamos imaginado as crianças lendo um monte de livros que poderiam fazê-las viajar por aí. A filhota me deu um beijo amoroso e foi dançar para reverenciar a vida.
Fiz o caminho de volta pra casa, vasculhei os cantos, as gavetas, as estantes, organizei o rol de livros, considerando as idades que supus que as crianças tivessem.
Cautelosa, não me esqueci de nenhum. Voltei para o carro com uma bolsa térmica de livros, preparada para não deixar nenhuma gota entrar caso a chuva caísse. A chuva caiu. As crianças não estavam no viaduto esquisito. Chorei um balde. Engoli o choro. Segui em frente. Parei o carro no supermercado.
As duas crianças estavam lá – estava escrito. Não houve tempo para muitas palavras; estavam com fome. Enquanto se alimentavam dos livros, aproveitei para comprar sanduíches, sucos e algumas frutas.
Ao sair, soube que ela se chamava Larilá e ele, João, e que estudavam no Colégio Municipal Rui Barbosa, em Gramacho.
Para me despedir, escrevi uma dedicatória em um dos meus livros e entreguei para os dois. João me pediu que escrevesse uma história só para ele.
— Topo — eu disse.
Despedimo-nos rapidamente, porque, com fome de livros e de comida, não se brinca.
Larilá e João desapareceram em um piscar de olhos. A chuva já caía forte.
Ao parar no sinal, debaixo do estranho viaduto, lá estavam quatro crianças lendo muitos livros, dividindo frutas e sucos.
Acenei. João, Larilá e mais dois outros pequenos leitores acenaram de volta.
Há dias que só dá para agradecer.
Depois disso, resolvi escrever Larilá em forma de libreto, para presentear as crianças que, como ela e o João, podem se apoiar nas belas histórias dos livros, para superar as injustiças e adversidades do mundo em que vivemos.
Quando Mário Ferraro me convidou para participar do “Boa.Pocket” e conversei com Arrigo Barnabé sobre como poderíamos criar juntos, senti a confirmação de que era um chamado irrecusável. Poderia assim realizar o sonho do João, da Larilá e, quem sabe, de todos aqueles que sabem da importância que tem o amor aos livros e a leitura.
Espero encontrar com Larilá e João e poder compartilhar essa ópera linda, bem tocada, cantada e encenada para retribuir seus maravilhosos ensinamentos.
Karen Acioly é autora carioca, no teatro musical e na ópera para crianças e jovens. Neste sábado (10/12), a partir das 17h, no palco da Sala Mário Tavares (no prédio anexo do Theatro Municipal), acontece a 1ª edição da “BOA.pocket!”, uma mostra que vai apresentar três óperas inéditas de curta duração (25 minutos). Priscila Bomfim, regente do TMRJ, vai comandar seis músicos, que acompanham os cantores Homero Velho, Andressa Inacio, Camila Marliere, Guilherme Moreira e as crianças Manoela Percegoni e Arthur Pollard. Karen é também criadora do Festival Intercâmbio de Linguagens (FIL), que completa 20 anos em 2022, e acaba de lançar o livro “A Dramaturgia da Ópera para Crianças – Cultura e Simbolismos” (Ed. Multifoco), resultado de uma pesquisa num mestrado na Sorbonne (Paris).