Luto e luta, apenas uma vogal diferencia o que na verdade tem o mesmo significado. Eu vivi com Alfredo (Sirkis, ambientalista, 1950-2020) uma vida plena, de absoluto amor, companheirismo, cumplicidade, e a única palavra proibida entre nós era morte. Éramos solares, complementares, e como Alfredo dizia: “Amor, as únicas coisas que não dividimos são a escova de dente e o astrólogo, porque todo o resto a gente divide.” A paixão pela natureza, pelos esportes, como skate e SUP, os planos para as próximas viagens, sempre para lugares exóticos, o gosto musical, pelas comidas até as coisas mais banais do cotidiano. Dois sagitarianos, com luas em sagitário, filhos únicos, e com os mesmos ideais e temperamentos, nossas singularidades se confundiam, como gêmeos xifópagos.
Quando entramos na pandemia, transferimos nossos escritórios pra casa — ele trabalhando na finalização de seu último livro, “Descarbonário”; eu, no design gráfico da capa e, ainda, finalizando o livro “Sérgio Bernardes-Rio do Futuro”, cujo prefácio Alfredo assinava.
Estávamos felizes, dentro das possibilidades do momento, fazendo planos para uma festa de aniversário em conjunto no pós-pandemia, que viria com a nossa festa de casamento, a viagem para a Itália, que nunca fizemos.
Na semana que antecedeu o acidente que matou meu marido, tínhamos programado a nossa ida ao sítio; sim, eu iria com ele, depois de muita insistência. Um dia antes do 10 de julho de 2020, desisti da viagem, estava nervosa com problemas de finalização no meu livro e achei melhor não ir.
Alfredo saiu de casa antes do almoço, e duas horas depois, recebi uma ligação do G1 para confirmar o acidente. A partir desse momento até a certeza da morte, passei as piores horas da minha vida. Os amigos ligando pra saber de mim, incrédulos, e eu só conseguia chorar e dizer que tinha morrido também.
Durante os primeiros dias de dor física, porque, sim, a primeira fase do luto corresponde a uma dor dilacerante, que aos poucos vai se transformando na dor pela ausência. Eu só conseguia pensar: por que eu não viajei? Que Deus não foi legal não por levar o Alfredo e ter me deixado, caramba! Por que eu desisti de ir ao sítio?
Em nenhum momento, questionei o fato de um cara tão incrível ter deixado esse plano, e sim por que eu continuava aqui, sem ele. E foi então, que, mexendo em suas coisas, deparei com seu arquivo, todo organizado, desde desenhos escolares, cartas do exílio, escritos não publicados e fotos, muitas fotos, todas em ordem cronológica e divididas por assuntos. Realizei que fiquei porque tinha a tarefa, nada fácil, de editar um livro contando a sua vida e suas realizações.
Foram 2 anos e 4 meses digitalizando fotos, organizando textos, tratando imagens, e me despedindo, da melhor forma que encontrei: finalizando “Alfredo Sirkis-Para Você Saber de Mim” (título que me veio à cabeça ouvindo “Baby”, de Caetano, na voz da Gal). Um livro que não fala de luto, e sim de vida, de um dos mais brilhantes personagens da nossa história, embora o tenha produzido durante o meu luto.
No momento em que as pessoas mais sofrem e fogem das memórias, eu as agarrei, com força. Ali também estava a minha história, precisava delas para compreender que aquilo me pertencia, era a minha vida. Não tive medo de encará-las, a ferida já estava aberta e, sim, eu suportaria qualquer dor, pois estava vivendo a maior de todas.
A cada momento, eu tive a certeza de que somente eu, que vivi quase 30 anos ao seu lado, era a pessoa capaz de produzir esse material com a veracidade necessária que uma obra desse porte merece.
Quando conheci o Alfredo, ainda namorados, ganhei de presente dele seus primeiros livros, “Os Carbonários” e “Roleta Chilena”, com as dedicatórias: “Para minha Tix, essas histórias dos anos de chumbo, da época que você não tinha nascido”. Ou seja, o universo já estava me preparando para o que hoje acredito ser a minha missão: cuidar de seu acervo e disponibilizar esse rico material para o maior número de pessoas, principalmente as novas gerações. Precisamos de heróis nacionais, e que essa história de vida, luta e amor fique imortalizada e sirva de exemplo para quem também acredita que um futuro melhor é possível.
Ana Borelli é editora, diretora de arte e ilustradora. Publicou “Rio de Janeiro Perdido”, “São Cristóvão – bairro imperial”, “Sérgio Bernardes-Rio do Futuro”, “Fernando Chacel-Tributo”, entre outros títulos. No dia 8 de dezembro, lançará o livro fotobiográfico sobre a vida e legado do marido, Alfredo Sirkis, na Casa Firjan.