Este ano, o FestLip — Festival Internacional das Artes da Língua Portuguesa chega à sua 14ª edição, depois de duas versões apenas digitais em função da pandemia. Desde o começo, a minha proposta era criar uma plataforma onde pudéssemos investigar o que há por trás da cultura e dos povos que também falam a nossa língua. Assim, fomos reunindo artistas de Angola, Moçambique, Portugal, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Guiné Equatorial e Timor Leste ao longo dos anos e também descobrindo muitos pontos em comum e, é claro, diferenças. Mas acredito que chegamos a um ambiente acolhedor em que diversas manifestações artísticas têm lugar — teatro, música, gastronomia, cinema, literatura enaltecem a língua portuguesa e seus sotaques.
Um dos motivos de meu interesse e que influenciou a escolha deste tema vem de minha experiência profissional como atriz e curadora artística dos países de língua portuguesa. Uma vez, após cinco dias consecutivos assistindo a espetáculos teatrais em diversos idiomas, no Ibsen Festival em Oslo, Noruega, fui impactada, em uma sala de espetáculos, por cinco atrizes moçambicanas que adentraram o palco. Como um bálsamo aos ouvidos, a sonoridade da língua portuguesa preencheu o espaço, percorreu meu corpo e foi gradativamente fazendo desaparecer a sensação de estranheza que me acompanhava há dias.
Desde então, minhas pesquisas, curadoria e produções artísticas não conseguiram mais se desvincular dessa experiência. A partir daí, criei o FestLip, que acontece aqui no Rio, todos os anos. Devido ao pioneirismo, sem falsa modéstia, o festival, ao longo dos anos, se transformou em uma potente plataforma de conexões das artes, cultura e educação dos países que falam português.
Tudo isso despertou minha atenção para criar um ambiente que remetesse os seguidores dessa plataforma à experiência sensorial que me inspirou até chegar aqui. A volta do FestLip presencial este ano é um ato de vitória. Os 14 anos dessa realização simbolizam a crioulização da cultura do Brasil na sua essência.
Reunir artistas de nove países, de quatro continentes, neste momento de retomada, em tantos aspectos, é um poder que pertence à nossa língua como forte identidade. Essa motivação não me deixa desistir do Rio como grande cenário dessa celebração. Decidi, nessa retomada pós-pandemia, mobilizar todos os países envolvidos em um esforço coletivo para voltarmos à nossa atuação. A dedicação foi tamanha que essa 14ª edição se realiza com uma enorme variedade de programação, inspirada nos 200 anos da Independência do Brasil. A abertura do Festival, no dia 10 de novembro, é motivo de orgulho para mim, e já vislumbro, para o próximo ano, muitas surpresas nas comemorações dos 15 anos do FestLip.
O espetáculo “(Des)Cortiço”, com direção de Felipe Vidal, produzido este ano pelo Festival, é um convite à reflexão sobre a nossa liberdade, nossa ancestralidade e o resultado de toda essa mistura que resulta nesse encontro mergulhado na diversidade. A proposta da dramaturgia do espetáculo surgiu há um ano e meio, quando eu estava relendo despretensiosamente o romance naturalista “O Cortiço”, do brasileiro Aluísio Azevedo, publicado em 1890.
Repentinamente intuí que tudo que eu gostaria de abordar na curadoria do Festival, em relação à Independência do Brasil, estava ali. Agora, isso se materializa e compartilho com todo o público essa mágica programação. Também aproveitamos a ocasião para festejar o cineasta moçambicano, radicado aqui há mais de 60 anos, o sensacional Ruy Guerra, que está com 91 anos.
Tânia Pires é atriz, formada pela Casa de Artes de Laranjeiras (Cal) e graduada em Ciências Sociais – Gestão em Produção Cultural, na Universidade Cândido Mendes, no Rio. Ela está à frente do FestLip desde 2008.