Em 2013, entrei como estagiário no Jornal O Globo com o grande sonho de virar repórter de Política e cobrir uma grande eleição. No ano seguinte, esse sonho se realizaria, mas o que vivi naquele período foi muito mais definidor do que o cargo que estava assinado na carteira de trabalho. Na época, evidentemente, episódios como a morte do candidato Eduardo Campos, são memoráveis. Contudo, foi naquela eleição que passei a trabalhar pela primeira vez com desinformação e — desde então — o tema passou a ser algo estrutural para se debater política e sociedade.
Expressões como “fake News” não eram usadas e outras como “viés de confirmação” nem sonhavam em ser tão difundidas. Mas, por iniciativa de Cristina Tardáguila, o jornal lançou um blog — de maneira tímida — chamado “Preto no Branco”. Lembro que o objetivo era “melhorar o debate público”. A premissa era muito mais corrigir possíveis distorções de dados que os candidatos daquela eleição declaravam sem grandes preocupações do que enfrentar um fenômeno desinformativo como viria a acontecer quase uma década depois.
O blog foi um sucesso. A audiência on-line batia outros já tradicionais da casa e chegamos, aos poucos, a aparecer no papel. Primeiro lá nas últimas páginas do caderno de Política até estarmos na capa no dia da eleição. Eleita Dilma Rousseff, o jornal preferiu não investir naquela iniciativa. Parecia, portanto, que desinformação não seria um problema no futuro.
Nesse tempo, parte dos repórteres saem do jornal e fundam a Lupa, primeira agência de fact-checking liderada também por Tardáguila. Também nesse período, Donald Trump vence a eleição americana e quebra recordes em mentiras por minuto em entrevista, o termo “fake News” vira o principal no dicionário Oxford, as correntes de Whatsapp passaram ser um canal de distribuição de desinformação desafiador, a jornalista Patrícia Campos Mello apura e sofre com a máquina do ódio brasileira e podemos ver desinformação em vídeos, áudios e até em gifs.
A sensação é estar em um mar revolto que a cada vez que você consegue lidar com uma onda-problema, já surge outra à vista.
O interessante é perceber que aquele fenômeno que poucos repórteres prestavam atenção em 2013 passou a ganhar destaque e relevância. A produção acadêmica sobre o assunto está com fôlego e diversificada em áreas que vão desde o Direito, passando pela Comunicação e Ciência de Dados. Em um esforço hercúleo, estamos centralizando essas produções para dar destaque a elas através do Achado, repositório acadêmico da Lupa. Diferentes instituições da Justiça também passaram a se movimentar. Na Uerj, já é possível ver uma escola de pesquisadores destinada ao tema com ascensão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso. Aliás, o STF junto com Tribunal Superior Eleitoral elaborou uma série de parcerias para combater a desinformação nessas eleições, que vão desde acordos com plataformas até com grupos ligados à educação midiática.
Nesse ponto, minha maior lição: não é possível combater desinformação sem trabalhar as futuras e atuais gerações com educação midiática. Quando a internet surgiu, teóricos como Manuel Castells eram otimistas e falavam que viveríamos a sociedade da informação: um momento quando todos poderiam trocar boas informações e ter acessos a conteúdos que, anteriormente, existiam várias barreiras físicas e institucionais. E é verdade. Nunca tivemos tanta informação. Não esperamos mais o jornal no dia seguinte para ver as notícias.
Mas, o mesmo Castells, recentemente afirmou que não sabemos usar essa quantidade de informações que temos e estamos, portanto, vivendo uma “sociedade da informação desinformada”. É neste ponto que a educação midiática é fundamental. Uma criança, hoje, aprende a ler e a escrever ao mesmo tempo que clica em tablets para ver desenho em aplicativos de vídeo. Nossas vidas passaram a ser mediadas por uma multiplicidade de mídias e nenhuma geração foi instruída para esse momento.
O impacto dessa ausência pode ser visto nos últimos anos quando uma série de correntes no WhatsApp indicou o uso de medicamentos que não eram eficientes no combate à Covid-19. Pesquisas acadêmicas ainda tentam dar a dimensão de quantas vidas poderiam ter sido poupadas com encaminhamentos baseados em informações confiáveis em um momento que — cientificamente — já tínhamos.
A próxima novela das 21h, inclusive, tem como premissa um caso de morte por desinformação. “Travessia”, da autora Glória Perez, será inspirada no caso de Fabiane Maria de Jesus, que foi espancada até morrer após ser confundida por uma descrição que viralizava nas redes de uma sequestradora de crianças, o que era falso.
De 2013 pra cá, a desinformação virou um fenômeno e ameaça à democracia. Aprendi isso na prática. Mas também vi que é possível atenuar os danos da mentira, afinal, ela não vai desaparecer. Ela sempre existiu e vai continuar existindo. A questão é tirar o protagonismo da desinformação que existe hoje em dia. Para isso, unir diferentes forças — do Jornalismo à Justiça, da Educação a Tecnologia — é fundamental.
Raphael Kapa é professor de História pela Universidade Federal Fluminense, mestre e doutor em História pela mesma universidade. Também é formado em jornalismo e já atuou na Band, jornal O Globo e na Agência Lupa, onde atualmente é coordenador pedagógico. Atua em colégios particulares como Andrews, São Vicente e Sion. Foi vencedor do prêmio ExxonMobil (Esso) na categoria Educação e finalista no prêmio Gabriel García Márquez de Periodismo (Gabo). É autor do livro “Educação Midiática — Por uma democracia digital”.