Meu pai, Nelson Rodrigues, disse que “o psicanalista é uma comadre bem paga”. Disse também que a vida é mais vida depois da Praça Saens Peña. Juntar essas duas frases me levou a escrever “Freud em Madureira”? Eu não sei. Tenho uma tendência forte — suburbana — de conversar com as pessoas sobre qualquer assunto que me interesse. Ou a elas. Converso no elevador, converso com os porteiros, sei da vida das pessoas que fizeram oficinas ou curso comigo em trabalhos voluntários, onde, volta e meia, me meto. Eu sou, por vocação, uma comadre e adoro observar as pessoas enquanto elas se divertem. Não preciso nem conhecê-las de perto; gosto de ver como elas sabem as músicas de pagode ou de sofrência. Mais do que na praia, os suburbanos se abrem para os estranhos com mais rapidez — mesmo que, como bons cariocas, o contato não tenha continuidade.
Quando eu morava no subúrbio — primeiro, em Irajá, depois na Ilha do Governador —, notava que a confraternização em dias combinados da semana ou no sábado era forte. Variava dependendo da faixa etária, claro, e do grau de solteirice. Gente comprometida tinha menos liberdade porque existia a restrição combinada. Quer dizer: às vezes, restrição; às vezes, combinada. Nada impede de cobiçar a mulher ou o homem de outra pessoa. Está para surgir o obstáculo intransponível quando alguém decide esticar a vista para além do cercado, digo do compromisso. A confraternização continua porque — como diz uma amiga minha, de Vicente de Carvalho — o pessoal ganha um e gasta dez. Como passar sem o churrasco e a cerveja? A cobiça ou a paquera, vamos dizer assim, estão firmes e fortes também.
Observem o metrô de Botafogo até a Pavuna. Tem sempre alguém fazendo ou tentando fazer contato visual. Como, em geral, as pessoas que trabalham na Zona Sul voltam para casa no mesmo horário, é fácil arranjar companhia em hora e meia de viagem. Quem sabe a troca de olhares e a conversa fiada, nos dias de semana, possibilitem alguma coisa depois?
Várias mulheres conhecidas minhas na Zona Sul estão solitárias – umas, por medo dos homens com aquele olho de doido funcional que andam soltos por aí (medo totalmente justificado, diga-se de passagem). É só prestar atenção no olhinho de psicopata que vemos nos noticiários.
Muitas porque dizem não existir homem hetero disponível. “Parece que, a partir do Túnel Santa Bárbara, todos os homens adultos são casados ou gays”, me disse uma amiga, ao que um gay, de Nova Iguaçu que estava na mesa, replicou: Mas, criatura, por que você não atravessa o túnel? “Porque não acredito que os homens de lá queiram alguma coisa séria”, respondeu a moça. Como definir de antemão se alguém quer “alguma coisa séria”? Melhor ainda: o que é “alguma coisa séria”?
A sensação que eu tinha no subúrbio da minha adolescência era a de que as pessoas se arriscavam, se aproximavam mais. Hoje, sinto isso também. Quem é do subúrbio — no meu círculo de relações, o pessoal com quem ainda convivo — conversa sobre “coisas”. Por isso, conto tantas histórias — todas aconteceram, eu só romanceei — no meu livro “Freud em Madureira”. Quem traiu, quem foi traída, o filho que escolheu a garota errada, os motivos pelos quais a mãe acha que a garota é errada, o marido que não dá carinho, o namorado que é ruim de cama, o bissexual que finge que é hetero, o hetero que maltrata a trans, mas diz que ama…
Meus amigos gays, da Zona Sul ou do subúrbio, também ficam sozinhos; às vezes, só, porque eles são muito mais atirados. “Aproveita que você está no morro”, me disse um deles noutro dia. Ou “nunca saí sozinho de um ensaio da Mangueira”, me disse outro.
Antes de que alguém critique a irreverência de uns ou a sinceridade compungida de outros, devo dizer que não faz parte das minhas obrigações, como escritora ou comadre, ter opiniões sobre onde as pessoas buscam carinho.
Minha protagonista, a psicanalista de Ipanema, jogou para o alto os cercados de classe e de cor para viver um romance tórrido — em Madureira. Bom sexo ajuda pra caramba, dependendo do custo emocional, claro, e da competência de colocar na balança o que a gente realmente quer. Sofia, a protagonista, expandiu sua visão do mundo e da psicanálise interagindo com um universo diferente do seu. Escrever esse livro me fez repensar minhas lembranças da Rua Samin e da Rua Graná. Talvez minha facilidade de recolher as histórias de mulheres e homens suburbanos venha dessa memória ou da minha vocação para comadre gratuita…
Foto: Fabio Rossi
Sonia Rodrigues é roteirista, com doutorado em Literatura pela PUC-Rio. Tem mais de 30 livros publicados e, na terça (13/09), lança “Freud em Madureira” (Batel), às 19h, na Travessa do Shopping Leblon. Sonia também organizou a autobiografia póstuma do pai, “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, que deu origem ao espetáculo de Fernanda Montenegro, grande sucesso de público e crítica.