Ontem, alta noite, eu senti, pelo tom grave do Tião (o produtor musical Tião de Almeida), que finalmente estava chegando a hora do Amândio da Hora, o DJ dos DJs que transformou a obscura Mariuzin em point e dali deu vida e som à Sótão, Regine’s, Barão com Joana, Bunker, Basement, Trap, Chez Castel, NYC, Crepúsculo, Kitchnette, Columbus, Bofetada Up, Bootleg, etc. Foi o cara que botou, entre outros, Fred Mercury e Mick Jagger pra rebolar em plena galeria Alaska.
Com um sorriso que só não era maior que seu amor ao ofício, driblava os bebuns que pediam músicas inadequadas, segurando a “cambada” na pista, até o sol raiar.
De dia, ainda dava expediente no templo do vinil, a Modern Sound. Enciclopédico, se não fosse de carne e osso, Amândio seria um desses aplicativos que, tocando uma faixa, adivinham o que mais irá agradar ao ouvinte. Ninguém passava pelo caixa da Modern com só um LP, um K7 ou um CD. Eram pilhas. Era de pedir aumento de mesada, de salário, de comprar fiado, entrar no cheque especial…
Quando disse que ia passar um tempo em Londres, em 1986, ele me fez apenas uma recomendação: “Não deixe de assistir a um show, a um só: Communards”. Eu: “Ãnh, quem!?” Ainda bem que obedeci.
Sempre à frente de seu tempo, o que melhor traduz sua genialidade são esses dois divertidos episódios de uma entrevista dada ao Igor Olszowski:
“Vinham caravanas de gays de New York e escutavam aqui o que eles não ouviam por lá. Eles falavam: ‘O que é isso que você está tocando aqui, que eu ainda não escutei em NY?’ Eu falava: ‘Eu trouxe de lá, querido’. Meses depois, o som começava a tocar em NY”.
“Fui ao Meridién fazer uma entrevista com a Régines Choukroun. Conversei com ela enquanto estava sendo massageada. Ela falou: ‘Quanto é que você quer ganhar?’ Pagava-se muito mal ao DJ à época. Aí, pensei: ‘Sabe de uma coisa? Vou jogar alto’. Pedi umas dez vezes mais do que eu estava ganhando, e ela falou: ‘Tudo bem, marravilha’. Pagou em dólar. Mas falavam mal de mim no Regine’s porque eu era muito avançado para o tipo de público que ia lá. Era um pessoal careta, da (alta) sociedade. Eu tinha que tocar Frank Sinatra.” De molecagem, ele mixava a versão original de My Way com a do Sex Pistols. A coroada não entendia nada, mas entrava no clima. Coincidentemente, maio passado, a rainha da noite morreu em Paris.
Hoje de manhãzinha, o Tião, por wazzap, me confirmou a morte. A primeira pessoa que zappeei foi o Nelsinho Motta, pois foi numa inesquecível madrugada do seu African Bar que tive a sorte de ver Amândio e Don Pepe se revezando numa simbiose inacreditável. Agora, ambos não estão mais aqui.
Um beijo no Tião, na Carla Duailibi, em todos os DJs órfãos do mestre que ainda animam nossa vida.
Helinho Saboya é advogado.