Devíamos perder a virgindade todos os dias. Não me refiro àquela sexual, que é a menor de todas, e, inexplicavelmente, a mais superestimada. Essa também a gente perde várias vezes — e no dia em que parar de perder, o sexo deixa de valer a pena.
Deixei de ser virgem do mar por volta dos 12 anos. Da neve, aos 20 e poucos. Aos 17, da música de Milton Nascimento. Da morte, aos 14.
Virgem do Rio de Janeiro fui até os 18. Do amor, até os 23 — ou até os 30, não sei mais. Do teatro — com “Viva a nau catarineta” — até os 16. Antes disso, o Rio era um cartão postal; o mar, uma miragem; a música, distração; a neve, fantasia; o amor, um ensaio; o teatro, um arremedo; a morte, um aceno distante.
E então veio o cinema.
Maior que o mar, e mais indecifrável. “Igreja sem Deus”, diria mais tarde Zé Miguel Wisnik, e eu recém era ateu. Mais enganador que a neve; mais vertiginoso que o “Milagre dos Peixes”; que a morte do meu avô, mais impalpável.
O cinema eu conhecia das sessões de domingo, no cine Brasil, no cine Odeon. Dos filmes de Maciste, de Hitchcock, de Elvis Presley, de Frankie Avalon e Anette Funicello, das pornochanchadas a que fui assistir com barba por fazer e carteirinha falsa comprovando a longínqua maioridade.
E então veio Godard.
E, ao não entender nada, entendi que cinema era outra coisa.
Depois vieram Renoir e “A regra do jogo”, Jacques Rivette e “A religiosa”, Alain Resnais e “Ano passado em Marienbad”.
Mas a virgindade do cinema eu perdi com “A chinesa”, de Godard.
Ali houve a epifania, o atordoamento, o assombro. A descoberta de que a política ia muito além das querelas entre PSD e UDN, de que tanto se falava lá em casa. Fui ler Dostoiévski, Popper; fui ver Beckett e Ionesco, fui ler Osman Lins e João Cabral. Um universo foi sendo inaugurado — a partir do pasmo provocado por Godard.
Depois vieram Fellini e “Amarcord”, Pasolini e “Saló”, Buñuel e “A bela da tarde”, Antonioni e “Zabriskie Point”.
Mas a luz acesa depois da sessão nunca me encontrou de olhos tão remoçados quanto depois do primeiro Godard. E dos que vieram, fora de ordem, com seus silêncios, suas elipses, seus cortes, no Pathé, no Paissandu, no Roxy, nas cinematecas, nos cineclubes. O último foi “Adeus à linguagem”, um experimento em 3D, no Instituto Moreira Salles — eu já adulto, Godard ainda jovem, como nos tempos de “Carmen”, “Alphaville”, “Rogopag”, “Acossado”.
Fui virgem de mim mesmo até ver a aurora boreal, Guernica, o Everest, a Baía de Guanabara, Atacama, Hiroshima. Até ouvir Milton ao vivo, perder pai e mãe, entrar no mar.
Até descobrir que Deus não existe, até ler Hilda Hilst, até ver um filme do Godard.