Se alguém me convidasse para fazer um blockbuster, tenho certeza de que não saberia — prefiro fazer filmes com temas que me mobilizem. Acredito que os autores são necessários. Autores anteveem as crises sociais, políticas, a evolução da arte e do entretenimento. O cinema é uma manifestação individual que nos dá o norte da criação humana. Isso faz a diferença! Não tenho nenhum problema em dizer que sou um autor cinematográfico, mas, a cada dia que passa, os autores ficam mais esquecidos porque quem manda é a catraca da bilheteria. Quem manda é o mercado. Desde sempre, corro por fora, não me encaixo nessa perspectiva. Vamos fazendo tudo que é possível.
O tempo de espera para realização de um projeto pessoal é demolidor! Aí chegou “Paixões Recorrentes” … O título é fácil de explicar: as tais paixões recorrentes, em geral, são manias! Cada vez que nos apaixonamos por algo que acreditamos ser novo… não é! É aquela mesma paixão! É uma paixão recorrente que vem de dentro pra fora. É o objeto da paixão que é novo. As paixões são impulsos obsoletos, mas têm uma vida que percorre toda a nossa trajetória. A vida é tão intensa que uma simples paixão de adolescência dá colorido a todas as nossas criações. Essas paixões que estão no título se referem a todas as paixões, inclusive as políticas. E a morte das utopias e das ideologias, que hoje vivemos, pode até resultar na recuperação da nossa saúde política e social. É importante esclarecer que sou contra ideologias! As ideologias em geral acabam em fascismo, autoritarismo, demonstração de grande poder, em confusões arbitrárias que, até caírem no esquecimento, geram desastres irrecuperáveis.
O filme trata exatamente das tórridas paixões recorrentes dos personagens que vivem turbulências sociais e são obrigados a mudar suas vidas — consequência de ideologias burras, imorais e cruéis que levaram os personagens e a todos nós a sofrimentos que sangram até hoje. Como nós, eles também preferem ficar alheios aos desatinos políticos, preferem não saber. Naquela praia deserta da costa do Brasil, nenhuma informação confiável os alcança. Reféns de suas perversas paixões políticas, os personagens — três brasileiros, uma francesa, um argentino e um casal de portugueses — deliberam como se tivessem o poder sobre seus países e suas vidas. Defenderão suas convicções até a própria morte! Esse título é isso!
Na verdade, todos os meus filmes são uma reflexão sobre o poder. Na trilogia, “Mar de Rosas” (1978), discuto o poder no núcleo de uma família classe média. “Das Tripas Coração” (1981) expõe quem comanda de fato as instituições. Finalmente, “Sonho de Valsa” (1988) revela o tortuoso caminho do amor e da libertação da mulher frente ao poder da sociedade machista. Construí toda a minha obra até hoje discutindo esse tema único.
Eu me identifico com o mal-estar da sociedade.
Transformar o mal-estar social em produto cultural é o desafio!
Ana Carolina Teixeira Soares tem uma obra com humor cáustico que escancara todas as formas de poder. O novo longa-metragem “Paixões Recorrentes”, que estreia esta semana em São Paulo e no Rio, foi lançado no Festival de Roterdã. No Festival de Cinema de Madri, ganhou o prêmio de Melhor Roteiro. Nesta semana, o Estação Net Botafogo inaugura o festival Ana Carolina em retrospectiva, desde seu primeiro longa “Getúlio Vargas”, os filmes da trilogia “Mar de Rosas”, “Das Tripas Coração”, “Sonho de Valsa” e “Amélia”, “Gregório de Mattos” e “A Primeira Missa ou Tristes Tropeços, Enganos e Urucum”.