No último mês, fomos atravessados por inúmeras formas de violência contra as mulheres: uma criança estuprada e impedida de realizar um aborto que a lei autorizava expressamente, sofrendo novamente a violência por parte do sistema judicial — que pediu para que ela “aguentasse mais um pouquinho” —; uma jovem atriz, também estuprada e que decidiu parir o bebê e entregá-lo para adoção, teve a sua vida íntima devassada e passou, consequentemente, a ser extremamente julgada e deslegitimada por sua escolha; e, mais recentemente, uma mulher em trabalho de parto, desacordada propositalmente pelo excesso de anestesia e estuprada enquanto dava à luz seu bebê em uma cesariana.
Nesses três casos, os estupradores, muito provavelmente, não eram maníacos que buscavam satisfazer seus desejos sexuais, portadores de perturbações mentais ou anômalos sociais. Pelo contrário, eram indivíduos perfeitamente inseridos na estrutura social existente que, se utilizando de uma relação de poder antecedente, atuaram de forma oportunista.
Essa relação desigual de poder advém da própria estrutura social baseada (também) na inferioridade feminina, que, ao alienar as mulheres de si mesmas, retira-lhes o direito à dignidade como indivíduos, transformando-as em objetos que existem para atender às demandas e necessidades do outro.
Não se elevando à categoria de indivíduo, as mulheres se tornam um objeto sobre o qual os homens podem (e devem) demonstrar todo o seu poder e virilidade, marcando o seu domínio nos corpos delas de diversas formas, sendo o estupro o ápice de tal dominação, uma vez que, além de ser marcado nas entranhas femininas, carrega, em um só ato, o domínio total da integridade física e psíquica da mulher violada, expressando, em último grau, a sobreposição da vontade do estuprador.
Por outro lado, quando a vítima é uma mulher em trabalho de parto, se estabelece um novo lugar de vulnerabilidade, advinda de uma relação hierarquizada entre médico e paciente, na qual (ainda) se atribui ao primeiro um grande poder de definir o que seria, em tese, o melhor para a segunda, muitas vezes sobrepondo a sua vontade sobre escolhas que recairão, em última análise, na saúde e corpo da paciente.
Nesse sentido, o que hoje tratamos como violência obstétrica é justamente a sobreposição da vontade do médico sobre os interesses da parturiente — pautada por qualquer razão, que não a sua saúde e autonomia —, caracterizando mais uma faceta de misoginia e do ódio contra as mulheres, perpetrados de maneira oportunista em um momento de extrema fragilidade física, psíquica e social.
O estupro nessas circunstâncias, por sua vez, é o ápice da violência obstétrica, que, para além de retirar das mulheres qualquer vestígio de autonomia, representa a completa instrumentalização e desumanização (assim como acontece, não por coincidência, no crime de tortura), infligindo dores físicas, psíquicas e, principalmente, suprimindo da vítima, através do poder imposto, a vontade e a possibilidade de se autodeterminar e de determinar o seu próprio destino.
Infelizmente, essa violência extrema perpetrada contra uma mulher (e o seu recém-nascido) durante a cesariana não é uma exceção: trata-se de um retrato da misoginia existente em nossa sociedade.
Portanto, é preciso entender esse ato não como um fato isolado por um anômalo social, mas como uma realidade silenciada — e nem por isso inexistente — que ilustra mais uma faceta do patriarcado e suas demonstrações de poder sobre as mulheres, sendo necessário jogar luz para essas violências que ainda se escondem atrás de togas e jalecos, mas que são onipresentes na nossa história e estrutura social.
Fernanda Moura Muniz é advogada criminalista e mestranda em Direito Penal e Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa.