Acabo de lançar “Sereias do hospício”, um livro de poemas, que venho escrevendo desde 2014, quando lancei minha primeira obra do gênero, “Terra”. Alguns desses textos nasceram antes de eu saber esse título e de entender que esse livro falaria sobre o tema da loucura. Os poemas são autobiográficos (como todo poema, em alguma medida, é), mas não são exatamente sobre mim. A personagem original dessas sereias é minha mãe, que se chamava Maria de Fátima (mas que preferia chamar-se Rhama Júlia Julião, segundo sempre dizia). Ela tinha um diagnóstico de transtorno bipolar, e muito desse livro está relacionado ao desejo de reinventar a experiência, rica e complexa, de ter convivido com ela.
Não é que os poemas falem diretamente sobre ela, nem que se precise dessa informação para compreendê-los. É que essa vivência fez com que eu refletisse muito sobre o universo da loucura, dos hospitais psiquiátricos, da vida daqueles que estão à margem dessa métrica medíocre que estabelece os limites do que é (e do que não é) o “normal”. Enquanto inventava esse livro, fui algumas vezes à beira, e voltei de lá com notícias, pesadelos, sutilezas. Foi preciso conhecer de perto o avesso, a terceira margem, que a gente só descobre quando está atento ao canto da sereia, ao desfile do bloco de carnaval.
Talvez eu possa dizer que esse livro, parcialmente autobiográfico, é também uma obra sobre a liberdade, a liberdade de todo mundo, que é a única possível. Nesse sentido, é importante lembrar o quanto os hospitais psiquiátricos foram desde sempre espaços oportunos para reforçar estigmas sociais e isolar todos aqueles que não obedecem à norma. E é claro que podemos pensar nisso, historicamente, a partir de questões de gênero, sexualidade, raça e classe.
O dia 18 de maio foi o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, e o 22 deste ano, coincidentemente, na gíria popular, refere-se a alguém que é “maluco”. Na verdade, não sou um militante histórico da luta antimanicomial, mas meu livro, de fato, deseja lançar alguma luz sobre o debate. A urgência de reumanizarmos as pessoas de forma ampla e de combatermos as perigosas fantasias normativas, controladoras e punitivistas deste país em que vivemos (e de todos os outros) é um dado importante para a minha poesia e para minha forma de entender as coisas.
“Sereias do hospício” divide-se, com as devidas simetrias, em quatro partes, intituladas: “Ambulância”, “Portões”, “Pátio” e “Janelas”, na tentativa de refazer um percurso, uma paisagem; esses signos, porém, evidentemente são desdobráveis. A ambulância põe em movimento, faz escarcéu; aliás, é sempre bom lembrar que sirene e sereia confundem-se. Os muros e os portões também levam a muitos lugares, e esse livro fala recorrentemente de entretempos. O pátio é um espaço aberto no fechado, um fora no dentro, um espaço de convivência limitada, habitado pelos pombos, que é o bicho mais frequente do livro todo. As janelas também têm essa interface entre os espaços e permitem que se olhe para além. Ambulância e pátio no singular, portões e janelas no plural.
É muito importante dizer que “Sereias do hospício” é, antes de tudo, um livro de poemas – e poemas são, por natureza, sereias no hospício da linguagem. Quero dizer que todo poema é uma forma de canto, de delírio, de voz pessoal que busca, em um conjunto de regras linguísticas mais ou menos fixas, uma possibilidade de comunicação, um molde, uma arquitetura. Por isso, tentei colocar minha escrita no fio dessa contradição. Há poemas em vários formatos: alguns, mais visuais, serpenteiam-se na página; outros são de estrofação regular, mais comportados; outro ainda se oferece como um monolito em versos decassílabos (espero não ter errado na contagem). Há poemas que terminam com ponto final, outros ficam abertos, com pontuação instável – umas vírgulas aparecem, outras são deliberadamente abolidas, os ritmos são variados, inconstantes, por vezes, erráticos. Um deles virou canção, a “Balada da Paloma”, aos cuidados de Luís Capucho. Talvez outros tenham o mesmo destino (quase se convidam). Os quês do livro são todos abreviados na forma “q”; não sei responder o motivo. Alguns versos são bem-humorados, irônicos, outros são graves e angustiosos, mas a maioria desliza entre a alegria e a tragédia.
Assim, o “Sereias do hospício” apresenta também assuntos variados dentro desse tema que é o mesmo, e personagens variados, embora todas elas atravessadas por uma figura matricial. Eu quis fazer um livro que fala dessas sereias, dessas vozes que nos seduzem para os desvios, para as fantasias e as ilusões. É um livro que tem seres que cantam e dançam, que criam e rasgam, que mentem muito e dizem verdades incontornáveis. Tentei fazer um livro que não fosse nem uma idealização ingênua da loucura nem a colocasse em um lugar de irrestrito sofrimento. É, enfim, uma tentativa de escuta.
Por fim, é um livro sobre os deslizes da razão, e ninguém pode dizer que está fora desse escopo (o próprio Ulisses, pedindo para se amarrar no mastro e destampar os ouvidos, não me parece tão racional quanto dizem). É sobre minha mãe, mas é também sobre essa força motriz, o mistério da ancestralidade, e daquilo que fica gravado no corpo da gente. É um livro sobre sedução e encantamento, sobre o deslumbre com a beleza, sobre o feitiço das canções. Mas é um livro de poemas, que vão falar de outras histórias para cada um que for lê-los, cada qual atento a suas próprias vozes. Este livro é autobiográfico, mas não é sobre mim: é sobre narcisos e sereias.
Rafael Julião é professor, poeta e pesquisador da Literatura e da canção popular brasileiras. Estudou Letras na UFRJ, onde também concluiu o mestrado (sobre Cazuza) e o doutorado (sobre Caetano). Essas pesquisas deram origem a seus livros “Infinitivamente pessoal — Caetano Veloso e sua verdade tropical” (2017) e “Cazuza — Segredos de liquidificador” (2019). Antes disso, ainda em 2014, publicou seu primeiro livro de poemas, “Terra”. Atualmente participa de um grupo de pesquisas interuniversitário sobre o desbunde nos anos 1970 e os diálogos entre corpo, cidade e canção.