Estava pensando em escrever um roteiro para a Netflix. Poderia ser a saga de uma pobre criatura que tenta sobreviver num ambiente hostil, com barulhos ameaçadores vindos do teto, imprecações entrando pelas janelas, gritos nos elevadores, porteiros que não abrem portas, recepcionistas que não recepcionam e onde falta gás para cozinhar ou tomar banho — mas seria autobiográfico demais.
Aí me ocorreu algo mais leve: uma série de terror. Não com a intenção de assustar, mas de repassar todos os clichês do gênero.
Haveria garotos nerds, apaixonados por jogos de RPG, e que seriam vítimas de bullying na escola. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria um delegado machão que, ao mesmo tempo em que luta contra o crime, trava uma batalha contra seus próprios demônios. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria um cientista malvado e sem coração, que dirige um laboratório onde são feitas experiências cercadas de muito mistério e pouca ética. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria uma mocinha estudiosa e virgem, seduzida pelo garanhão da escola, que depois a difamará pela cidade. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria a mulher guerreira, abandonada pelo marido e que cuida sozinha dos dois filhos. O mais velho, caladão, sem amigos, gosta de fotografia e nutre um crush pela mocinha ex-virgem. O caçula é um dos nerds e, por ser um garoto sensível, também sofre bullying. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria um desaparecimento misterioso (no caso, do caçula do parágrafo acima), e a mãe se recusaria a acreditar que o filho estivesse morto. Ficaria totalmente pirada das ideias, e todos achariam que ela está louca – só porque agiria como uma total descompensada (não lava o cabelo, faz tabuleiro Ouija na parede com lâmpadas natalinas, conversa com luzinhas pisca-pisca) e, por isso, ninguém acreditaria nela. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria uma teoria conspiratória envolvendo agentes do governo, para encobrir o desaparecimento do garoto nerd. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria pessoas aparentemente sensatas que entrariam nas maiores roubadas (tipo se enfiar em buracos melequentos em tronco de árvore, de noite, munidas apenas de uma lanterna. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria lâmpadas piscando e lanternas falhando, o tempo todo. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria uma menina misteriosa, com poderes psicocinéticos, epistaxéticos e telepáticos, que teria sido abduzida e sofreria com a frieza dos adultos e a incompreensão dos pirralhos. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria um monstro de outra dimensão, meio Alien, meio Predador, em cuja existência ninguém leva muita fé, mas contra o qual lutariam os garotos nerds e o teen esquisitão, mais sua sweetheart. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
Haveria uma fotografia feita no escuro, sem flash, com cam analógica, que — ampliada mecanicamente — revelaria um mistério. Hmmm, melhor não; “Stranger things” já fez isso.
É, depois de “Stranger things” fica difícil escrever qualquer série sobre clichês de séries de terror.
Quem sabe se, em vez de luzes que piscam e pessoas que somem, pudesse haver elevadores eternamente em manutenção, baile funk na vizinhança até as 2h da madrugada, vazamento no apartamento de cima, fedelhos aos berros na quadra e taxa de condomínio praticamente no valor do aluguel?
Hmm, melhor não; ficaria muito autorreferente.