No dia 25 de maio de 2022, um homem negro, aposentado em virtude de diagnóstico de esquizofrenia, foi parado por policiais rodoviários federais por volta das 11h da manhã, quando dirigia uma motocicleta sem usar o capacete, equipamento de uso obrigatório.
Segundo testemunhas que acompanharam a ação dos policiais rodoviários federais, o indivíduo teria atendido todos os comandos que lhe foram dirigidos, colocando as mãos sobre a cabeça para ser submetido à revista pessoal. Ao procederem à revista, os policiais teriam encontrado em seu bolso remédios para a sua grave doença psiquiátrica e as respectivas receitas médicas.
Ainda segundo os relatos de quem assistiu, apesar de não ter reagido à abordagem, ele teria sido ofendido pelos policiais rodoviários federais, vindo, somente então, a retrucar a agressão verbal. Em resposta, os agentes públicos o teriam derrubado, imobilizado e colocado dentro da parte traseira da viatura.
Mas o pior estava por vir.
Os policiais rodoviários federais, então, forçaram seu corpo de modo a manter a parte traseira da viatura praticamente fechada, enquanto gás lacrimogêneo foi despejado no ambiente.
Em imagens que rodaram o mundo, é possível ver, pelo movimento de suas pernas, que ele se debateu com bastante intensidade, até que, enfim, perdeu força e foi inteiramente posto na caçamba da viatura.
O desfecho todos conhecemos.
Genivaldo de Jesus Santos morreu aos 32 anos de idade, vítima da ação cruel de policiais rodoviários federais — agentes públicos pagos por todos os contribuintes e cuja função precípua é proteger a sociedade —, deixando para todos nós uma série de questionamentos que vão muito além de aspectos jurídicos.
Afinal, logo após a morte de Genivaldo, viralizaram nas redes sociais, filmagens do que seriam aulas ministradas em cursos preparatórios para carreiras policiais, nas quais aqueles que se dirigiam aos alunos — não os chamaremos de professores, em respeito a tão valorosa classe — ensinavam técnicas de torturas, elogiavam o homicídio de suspeitos e se vangloriavam de chacinas cometidas.
Sabendo-se não apenas que tais cursos possuem frequência bastante elevada, como ainda que alguns desses indivíduos que se dirigem aos alunos — os quais, repita-se, não chamaremos jamais de professores — são seguidos por milhares de pessoas em suas redes sociais, talvez fique um pouco mais simples, e doloroso, entender por que abordagens como a que vitimou Genivaldo acontecem e, possivelmente, continuarão acontecendo.
Se considerarmos que o atual Presidente da República — indivíduo que deveria ser o exemplo de obediência às normas — tem participado de motociatas muitas vezes sem capacete, não se tendo notícia de que tenha sido abordado por policiais de qualquer corporação, a resposta a essa questão fica ainda mais nítida.
Situações como essas retratam o que muitos estudiosos chamam de Direito Penal do Inimigo, modelo teórico de política criminal que tem como premissa a existência de um estado de guerra, no qual determinados indivíduos seriam inimigos da sociedade e, nessa condição, não poderiam gozar dos mesmos direitos e garantias que a lei conferiria aos ditos cidadãos de bem.
Para além de não ser legal e moralmente aceitável admitir-se que direitos e garantias não sejam para todos, a referida lógica assume contornos ainda mais graves em um país como o Brasil, onde, segundo dados oficiais, a maioria da população carcerária e vitimada por ações policiais é composta por homens jovens, negros e de baixa escolaridade.
Essa realidade escancara, a nosso ver, a seletividade de todo o sistema penal brasileiro, concebido e implementado como um instrumento de manutenção de privilégios e exclusão, por meio do qual toda a repressão — iniciada com a escolha das condutas a serem proibidas e suas respectivas penas, passando pela implementação da política criminal pelos órgãos de investigação e persecução e chegando até aqueles que julgarão possíveis descumprimentos à lei — será dirigida àqueles que, nas palavras do professor — esse sim — Eugenio Raul Zaffaroni, “circulam pelos espaços públicos com o figurino social de delinquentes, prestando-se à criminalização — mediante suas obras toscas — como seu inesgotável combustível”.