As imagens impressionantes de um bombeiro militar do Estado do Rio agredindo um atendente do McDonald’s, depois entrando na lanchonete e, segundo testemunhas, disparando um tiro por causa de um desentendimento envolvendo a aceitação ou não de um cupom de desconto, trouxeram mais uma vez à tona o que parece ser a banalização da vida humana.
Afinal, pensar que um agente do Estado, cuja função principal é justamente proteger a população, possa agir de forma tão cruel contra um trabalhador indefeso é, para dizer o mínimo, muito impactante.
Muito embora as investigações sobre o fato ainda estejam em andamento, a narrativa apresentada pelas testemunhas e trazida a público pelos veículos de comunicação aponta, ao menos em teoria, para um crime de homicídio qualificado tentado, a ser processado e julgado perante o Tribunal do Júri.
Objeto de grande curiosidade e incompreensão por nossa sociedade, o Tribunal do Júri é um dos instrumentos mais importantes de participação popular em um Estado Democrático de Direito, uma vez que a própria sociedade é chamada para julgar seus semelhantes por acusações gravíssimas.
Previsto como garantia constitucional, o Tribunal do Júri possui procedimento específico regulamentado no Código de Processo Penal, por meio do qual o processo é dividido em duas fases distintas. Na primeira fase, toda a prova é produzida e analisada por um juiz concursado, a quem caberá decidir se foi comprovada a ocorrência de um crime intencional contra a vida e se há indícios suficientes de que o acusado foi o autor do delito. Caso o magistrado assim entenda, determinará que a prova seja novamente produzida, desta vez em plenário e perante sete juízes leigos — cidadãos comuns, sem formação jurídica —, a quem caberá decidir em votação sigilosa se o réu será condenado ou absolvido.
Considerando que não são, ao menos necessariamente, formados em ciências jurídicas e profundos conhecedores das leis, o Código de Processo Penal prevê que, ao decidirem a causa, os jurados deverão se guiar por suas convicções íntimas, estando desobrigados, inclusive, de apresentar os fundamentos de suas conclusões.
Além disso, tendo em vista que a Constituição Federal prevê a soberania dos vereditos dos juízes leigos, caso a decisão que venham a proferir seja inteiramente contrária a toda a prova produzida, o máximo que se poderá pleitear em um recurso que venha a ser interposto será a anulação do julgamento, com a determinação de realização de outra sessão com jurados diferentes.
Todavia, caso, nessa nova sessão de julgamento, os outros jurados venham a proferir decisão idêntica à primeira — ainda que, repita-se, inteiramente contrária ao que foi produzido e provado no processo —, o Tribunal de Justiça nada poderá fazer para mudar o conteúdo da conclusão a que chegou o Conselho de Sentença.
Busca-se, com tal previsão normativa, não apenas chamar a sociedade para decidir o destino de seus pares em julgamentos relativos a acusações extremas, como ainda estabelecer a prevalência do sentimento de justiça e adequação em detrimento do que pode vir a dizer a letra fria e insensível da lei.
Dito de outra forma, ao prever as regras dos julgamentos perante o Tribunal do Júri, nossa legislação reconheceu que, em determinadas hipóteses excepcionais, a solução justa não estará nos códigos aos quais os magistrados concursados são vinculados, mas no sentimento de adequação trazida por representantes leigos da própria sociedade.
Parece-nos razoável, portanto, concluir que, caso os fatos que vêm sendo alegados pelo Ministério Público sejam provados e o bombeiro militar que agrediu e posteriormente disparou contra o funcionário da rede de lanchonetes seja julgado pelo Tribunal do Júri, a decisão que vier a ser proferida pelos jurados enquanto representantes do povo dirá muito sobre nós enquanto sociedade.