Hoje sabemos que a Idade Moderna começou com a tomada de Constantinopla pelos otomanos, em 29 de maio de 1453. E acabou em 14 de julho de 1789, com a queda da Bastilha, dando início à Idade Contemporânea.
Possivelmente nenhum parisiense — ou constantinopolitano — se deu conta de estar vivendo um momento de tal magnitude. Ou nos teriam chegado documentos do tipo:
“Prezado Caio Júlio Tácito, espero que esta o encontre gozando de saúde junto aos seus. Escrevo para dizer que talvez não possa comparecer aos festejos natalícios da sua digníssima esposa, aí em Antióquia, haja vista a crescente polarização entre os cidadãos de bem de Constantinopla e as hostes otomanas que querem porque querem tomar o poder. Se esse “nós x eles” não acabar, nem sei aonde vamos parar. Prezo muito os valores da Idade Média e dizem que, se esses turcos conseguirem pular a muralha, vão implantar a Idade Moderna e aí já viu. Fica com Júpiter. Um abraço do amigo Públio Aurélio Lépido, 28 de maio de 1453.”
Ou:
“Dona Juliette, desculpa, não deu pra pegar a peruca do seu Jacques no coiffeur porque tava o maior bafafá na rua da Bastilha. A Amélie, do 402, falou que parece que vai acabar o absolutismo e a partir de agora quem manda é um tal de iluminismo – ou algo assim. Mas a senhora sabe como ela é fofoqueira, né? Não sei como o seu Robespierre ainda não deu o aviso prévio dela. O Emmanuel não quis fazer o dever de casa e queria porque queria tomar banho antes de dormir (enrolei ele com aquela história de que em agosto ele toma). Deixei o magret de pato com laranja no forno. À demain, que já deu minha hora. Marianne.
P.S. Amanhã, se for mesmo feriado de começo de Idade Contemporânea, eu não venho.”
Não, é preciso algum distanciamento para que se forme juízo crítico. Mas de uma coisa podemos ter certeza: uma nova era se inaugurou no dia em que foi lançada a calça que desbota e perde o vinco.
Esse conceito renegava todos os princípios vigentes até então. Do Pervinc 70 para o jeans o que houve foi uma revolução copérnica — maior que a francesa ou a que levou à queda do Império Romano do Oriente. Saía de cena o terno de Nycron — aquele do senta-levanta —, substituído por uma lona azul que vestia igualmente homens e mulheres de todos os sexos (que ainda eram apenas dois, na ocasião).
Daí para a roupa vir velha e rasgada de fábrica foi um pulo.
E para vir velha, rasgada e mais cara, um átimo.
Ainda não chegamos lá, mas o próximo passo será os eletrodomésticos virem com a garantia vencida. Influêncers serão os primeiros a aderir e postar fotos de sua Dumb TV de 86 polegadas, com a tela falhada. No texto que acompanhará a imagem, causarão ainda mais inveja ao deixar evidente que no teclado do seu aifone 7G a letra “E” não funciona. Quanto mais importante a letra defeituosa, mais caro será o aparelho. No Brasil, o modelo sem o “A” será disputado a tapa, enquanto que o sem o “J” poderá ser encontrado facilmente no Mercadão de Madureira ou na saída do Metrô Uruguaiana.
Na etapa seguinte, o carro zero quilômetro será descarregado na concessionária já amassado, ou pelo menos com a lataria arranhada. E os pneus carecas. Isso, claro, terá um custo adicional.
Edifícios de alto padrão serão entregues precisando trocar o encanamento. Telescópios serão construídos com lentes embaçadas. Presidentes serão eleitos já com extensa folha corrida.
Com todas essas evoluções, retrocederemos, inexoravelmente, à Idade da Pedra.
E a derrocada começou assim: “Liberdade é uma calça velha / Azul e desbotada / Que você pode usar / Do jeito que quiser / (Não usa quem não quer) / US Top / Desbota e perde o vinco.”
O dia exato eu não sei, mas foi em 1976. E o responsável, um tal de Denim Índigo Blue. Que mudou os rumos da História como nenhum otomano ou iluminista jamais ousaria imaginar.