Hoje, 7 de abril, é o Dia do Jornalista, estamos todos de parabéns.
Mas gostaria de homenagear alguém que, para mim, foi e continua sendo muito especial: meu pai, Octavio Malta, que, este ano, completaria 120 anos.
Como parte dessas homenagens, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) editará, este ano, um livro com reportagens, perfis e memórias: “Octavio Malta, jornalismo de combate”.
Uma de minhas alegrias com a publicação desse livro é que, certa vez, perguntei-lhe por que não escrevia suas memórias.
Ele resistiu:
— Não dá para escrever tudo.
Com certeza, não gostaria de tratar de sua militância política; sempre foi reticente sobre esse assunto. Muitos companheiros continuavam vivos, e era preciso preservá-los. O regime de exceção estava agonizando, com o final do AI-5 e a anistia aprovada, mas as eleições continuariam sendo indiretas no governo militar.
Malta morreu na madrugada de 25 de abril de 1984, data em que o Congresso enterrou, no início da noite, por apenas 22 votos, as “Diretas Já”.
Quem sabe, com as Diretas aprovadas e, mais tarde, com a convocação da Constituinte, ele não se animasse em escrever as memórias que eu tanto insistira.
Nos anos 60, Nestor de Holanda publicou uma relação dos dez maiores jornalistas do País e, entre eles estava Octávio Malta, que escrevia, no “Última Hora”, a coluna diária “Jornais e Problemas”. Cada um dos dez mais tinha a sua justificativa; a de Malta era a seguinte: “Todo jornalista, quando se senta diante da máquina de escrever, pede aos céus para ser o mais claro e simples possível”. E dizia Holanda: “E Malta é o único a quem Deus atende”.
Assim era meu pai: claro e simples, objetivo, ousado, corajoso, determinado, amigo, generoso, teimoso, batalhador, irônico, otimista, engraçado, descobridor, respeitado.
No final dos anos 30, quando Samuel Wainer o conheceu, ele já era “guru da imprensa brasileira”. Dorival Caymmi dizia que “Malta, pessoa do meu coração, sempre se disse à boca pequena, era o melhor secretário de jornal que existia: um riso adorável, uma calma e, para o trabalho que fazia, um milagreiro”.
Augusto Nunes foi quem escreveu, a pedido de Pink Wainer, as memórias de Samuel: “Minha Razão de Viver”. Quando ele chegou ao final das 57 fitas que Samuel deixou gravadas, Nunes confidenciou-me: “O depoimento é impressionante. Samuel detona todo mundo, inclusive ele próprio. O único que fica bem na história, e durante toda a vida, é Octávio Malta”.
Malta sempre ficou bem. Pode-se pegar qualquer livro de memórias de intelectuais de sua época; não importa de quem sejam as lembranças. E isso desde o tempo de Graciliano Ramos, que o incluiu em “Memórias do Cárcere”.
Em 1935, como Secretário-geral do Socorro Vermelho, organização de solidariedade do Partido Comunista, foi preso na Casa de Detenção, no Rio.
Lá, recebia os jornais diários e escrevia um resumo do noticiário que, nas galerias da Frei Caneca, era ouvido pelos demais presidiários através da voz possante do médico Campos da Paz, que lia, junto às grades, os artigos redigidos pelo amigo de cela. “Marta”, como o chamavam os mais íntimos (ele tinha dificuldade em pronunciar os eles), era o “Matoso” à época, “mas meu nome ‘legá’ é Octávio Malta”, brincavam os amigos.
Paulo Francis escreveu, em 1984, que Malta foi “um polemista de esquerda e uma doce criatura”: “Pouca gente sabe que ele salvou a vida de Samuel quando teve tuberculose e desistiu da vida. Malta o internou e cuidou dele”.
O primeiro sucesso de Samuel foi “Diretrizes”, que teve Malta como braço direito. Era ele quem escrevia os editoriais. Vinte anos depois, Samuel soube que o amigo havia sido mandado pelo PCB para controlar o jornal-revista, mas a “miopia política” de Samuel tinha “causas facilmente identificáveis”: “Eu estava deslumbrado com a constatação de que tivera acesso ao clube dos intelectuais de esquerda. Subitamente, surpreendera-me amigo de intelectuais, como Jorge Amado, Zé Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Érico Veríssimo. Sentia-me honradíssimo por tantos privilégios. Ter a companhia de Octávio Malta assim era um motivo de orgulho suficientemente poderoso para fechar-me a vista a certas evidências. Malta era uma figura extraordinária, sempre seríamos amigos”.
Depois veio “Última Hora” e, de novo, Malta estava à frente: “Ele era meu braço direito, meu velho companheiro, a quem vinha fazendo sucessivas consultas desde a conversa com Getúlio em Petrópolis”.
Samuel, ainda nas memórias, comemora o sucesso do UH: “Os editoriais redigidos por Octavio Malta — eu ainda não me sentia suficientemente seguro para escrevê-los — tinham peso crescente”. Além de ser o redator-chefe do jornal, Malta, durante duas décadas, assinou a coluna “Jornais e Problemas”, a primeira do País a comentar a imprensa diária. Em Machado de Assis, ele encontrou a inspiração para a coluna e diariamente repetia o mote que conheceu em Quincas Borba: “Não há vinho que embriague como a verdade”.
Em abril de 1964, perseguido pela polícia de Carlos Lacerda e pelas tintas de Roberto Marinho, Malta foi obrigado a passar alguns meses na clandestinidade, mas sem abandonar a luta. No UH, assinava, três dias na semana, um artigo com o pseudônimo de Manoel Bispo e, na “Folha da Semana”, outro, como Luiz da Silva, personagem de Graciliano Ramos em “Angústia”, nome sugerido pelo jovem amigo Maurício Azêdo.
Quando o “Última Hora” foi vendido, em 1972, Malta não teve mais onde escrever na grande imprensa.
Paulo Francis lembra que “todos respeitavam Malta e o amavam como símbolo de um radicalismo que hoje me parece atenuado ou reduzido à demagogia no Brasil”.
Octavio Malta, autor do livro “Os Tenentes na Revolução Brasileira”, foi, na segunda metade do século XX, um dos mais importantes e influentes jornalistas do País. Quando faleceu, foi saudado como um dos responsáveis pela remodelação da imprensa do Rio de Janeiro nos anos 50.
Ele morreu no dia em que o Congresso enterrou as Diretas (25 de abril de 1984). Na noite anterior, ele foi para a janela de seu apartamento, no Flamengo, bater panela como a maioria dos brasileiros que queriam votar para Presidente. Pela manhã, esteve na ABI, aonde foi para pagar a mensalidade e ficar apto a votar na renovação de um terço do Conselho.
Rubem Braga foi com Otto Lara Resende ao enterro de Malta. Depois lamentou, em artigo, que ambos ficaram à sombra de uma árvore do Cemitério São João Batista, em vez de fazer como os mais velhos que, enfrentando o calor forte e uma enorme escadaria, foram até à beira da sepultura, como foi o caso de Barbosa Lima Sobrinho e Luís Carlos Prestes.
E ainda saíram dali, por volta das 5 da tarde, para subir em um palanque armado na Cinelândia, onde se realizava o último comício Pró-diretas.
No caixão, Malta certamente se deliciou com o gesto — ele sabia muito bem que a luta devia continuar.
Viva Malta! E Viva o 7 de abril!
Dacio Malta é jornalista e diretor de cinema. Dirigiu “O Dia”, o “Jornal do Brasil” e “O Globo”; e realizou dois documentários: “Noel Rosa — O Poeta da Vila e do Povo” e “O Gato de Havana”, que conta a história do “Gato Tuerto”, o mais emblemático cabaré cubano.