Aqui, trechos do discurso do jornalista e escritor Ruy Castro para os destacados da Academia Brasileira de Letras, na noite da sexta (11/03), ao receber o prêmio Machado de Assis. Na ocasião, aconteceu a posse de Merval Pereira como novo presidente da ABL, publicado aqui.
Se você é jornalista, escritor ou apenas aprecia um bom texto, pode admirar o que vai ler; se é estudante de Comunicação, ou um recém-formado como Ruy à época, em novembro de 1967, talvez ainda mais. Foram aplausos infinitos vindos do salão. Na imagem, a posse de Guimarães Rosa, ilustrando o texto sobre sua morte, que aconteceu três dias depois.
Confira:
“Estávamos em novembro de 1967, uma segunda-feira. Dali a três dias, na quinta-feira, João Guimarães Rosa finalmente tomaria posse de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, para a qual fora eleito em 1963. Justino Martins, diretor da revista “Manchete”, chamou o jovem repórter, que era eu, e me mandou entrevistar o escritor.
Não entendi por que Justino me confiou a tarefa. A revista estava cheia de repórteres experientes — dois deles, os poetas Lêdo Ivo, futuro acadêmico, e Homero Homem, certamente amigos de Guimarães Rosa. Eu tinha menos de um ano de profissão e acabara de chegar à “Manchete”, vindo do “Correio da Manhã”. Mas foi assim. Justino me convocou à sua mesa, deu-me o número do telefone de Rosa no Itamaraty e só me recomendou que o chamasse de embaixador — o que Rosa também era.
Telefonei e Guimarães Rosa, em pessoa, atendeu. Apresentei-me e disse o que queria: uma entrevista “definitiva” para “Manchete”, uma conversa “em profundidade” sobre sua obra. Na onipotência dos meus 19 anos, eu me julgava à altura da tarefa — seis meses antes, ganhara o Prêmio Esso de Literatura para Universitários, com um pretensioso ensaio sobre a “técnica cinematográfica” do escritor. A comissão julgadora do prêmio fora formada pelo acadêmico Josué Montello, o também futuro acadêmico Eduardo Portella e Elysio Condé, proprietário do histórico “Jornal de Letras”. Por isso, como eu saberia depois, Justino me escolhera. E, delirante, eu já me via no apartamento de Guimarães Rosa em Copacabana, durante horas, quem sabe dias, entre seus livros e gatos, com Rosa discorrendo para mim sobre a gênese de Diadorim, a simbologia faustiana entre Riobaldo e o Diabo e a constelação verbal de “Grande sertão: veredas.
Mas Rosa logo me despertou do sonho. Disse-me que sua posse na Academia estava às portas e ele ainda não terminara de escrever seu discurso. Não podia parar para conceder entrevistas, “nem mesmo para ‘Manchete’”, acrescentou. Insisti: “Mas, embaixador…”. E ele, firme, mas gentil, me autorizou a telefonar de novo no dia seguinte, quem sabe já teria terminado o discurso. Fiz isto e sua resposta foi a mesma — não conseguira, ainda estava “lutando com as palavras”. Sugeriu-me que procurasse sua filha Vilma, no Leme: “Ela sabe tudo sobre mim”. E insistiu em que eu comparecesse à posse e me prometeu uma cópia autografada do discurso.
Assim, nos dias seguintes, fiquei sabendo tudo sobre Guimarães Rosa pelos olhos de Vilma. Na quinta-feira, fui à cerimônia e, neste salão pela primeira vez, vi-me postado, de pé, a dois metros do púlpito de onde Guimarães Rosa leu seu discurso — um perfil apaixonado de João Neves da Fontoura, seu antecessor na Academia e mestre no Itamaraty. E leu-o com voz firme e musical, sílabas escandidas com nitidez, sem o desperdício de uma consoante ou vogal. Era como se tivesse a consciência de estar falando para a eternidade. Findo o discurso, Rosa desceu do púlpito sob uma tempestade de palmas, palmas que continuaram enquanto ele era abraçado pelos acadêmicos. E, então saiu pelo auditório, muito alto e aprumado, estendendo ele mesmo a mão para todos os presentes. Parecia hipnotizado. Quando apertou a minha, falei-lhe baixinho sobre a cópia autografada, mas ele não escutou.
Na sexta-feira, na redação da “Manchete”, na rua Frei Caneca, cometi um alentado perfil analítico sobre Rosa, que foi mandado a compor na oficina, paginado com as fotos de Antonio Trindade e titulado e legendado por um redator. “Manchete” só sairia na quarta-feira seguinte. Mas, dois dias depois, na noite de domingo, Guimarães Rosa sofreu um infarto fatal em seu apartamento.
Era o que ele, médico e cardíaco, tanto temia — não resistir à emoção. Na segunda-feira de manhã, Justino Martins cancelou meu artigo e pediu a Magalhães Junior, principal redator da revista, acadêmico e amigo de Rosa de longa data, que escrevesse um texto mais pessoal. Era a coisa certa a fazer, e Magalhães a fez muito bem. Mas não me abati porque tive um insuperável consolo: saí na foto de página dupla que abria a matéria de Magalhães, de papel e caneta na mão, ao lado do púlpito de onde Rosa falava para uma plateia emocionada.
Para Rosa, a Academia seria o reconhecimento definitivo de sua obra — o fim das controvérsias sobre ela. Sim, porque, em 1967, acreditem ou não, “Grande sertão: veredas” não estava a salvo de críticas, mesmo que sussurradas, em livrarias e redações.
Para alguns, era uma obra-prima frustrada. Para outros, sua trama era implausível e, para ainda outros, o romance era mais fácil de ser lido em alemão, na tradução de Curt Meyer-Clason, do que no original. E este era o gracejo que mais magoava Rosa, segundo me contaram dois de seus interlocutores mais chegados, Franklin de Oliveira e Geraldo França de Lima, este também futuro acadêmico.
Para Rosa, só o fardão calaria de vez essas dissensões — porque, em 1967, entre outros grandes nomes da cultura, a Academia era Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Barbosa Lima Sobrinho, Gilberto Amado, Viana Moog, Pedro Calmon, Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, Afonso Arinos de Melo Franco, José Américo de Almeida, Afrânio Coutinho, Álvaro Lins, Augusto Meyer, Adonias Filho, Marques Rebelo, Jorge Amado. E ele fora eleito por unanimidade. Tendo esses homens como pares, quem poderia criticá-lo? Mas o destino tinha outros planos. Contra todas as probabilidades, seu coração o poupou durante a cerimônia, Deixou para traí-lo 72 horas depois, quando ele, certamente pacificado, já dispensara as defesas, abrira-se para a emboscada.
No dia seguinte, vim ao seu velório na Academia. E, pela quantidade e qualidade das pessoas que eu via ao seu redor, convenci-me de que ele atingira a definitiva unanimidade.”
Outro trecho:
“Talvez o Prêmio Machado de Assis não seja só pelo conjunto de obra. Mas também pelo conjunto de vida, de uma vida dedicada à segunda coisa mais nobre ao nosso alcance: aprender.
A primeira, naturalmente, é ensinar.
Nenhuma casa representa mais essa vocação para a semeadura e a colheita, a do aprendizado e do ensino, do que a Academia Brasileira de Letras. De todas as instituições que têm como território de estudos o Brasil, ela é a instituição-síntese, porque, desde o começo, além dos ficcionistas, poetas e ensaístas, recebeu praticantes de todas as disciplinas: historiadores, juristas, filósofos, diplomatas, economistas, médicos, cientistas, educadores, linguistas, cientistas sociais, inventores, religiosos, políticos, militares, artistas e jornalistas.
À Academia, a minha gratidão e a consciência de que ser premiado por ela redobra minha responsabilidade como escritor e como brasileiro.”