Primeira sequência do filme. Cenário: uma calçada movimentada de bairro da zona sul carioca, ou fila de automóveis diante do sinal fechado. Personagens: homem adulto, bem apessoado, e um menino de rua. Situação: o menino de rua aborda o personagem que caminha pela calçada, ou o que está sentado diante do volante. Há uma diferença de idade e evidente desnível social e econômico entre eles. Ação: o menino de rua pede ao passante, ou ao motorista, uma moeda de real para comprar um prato de comida. Ele precede o pedido, dizendo: “Estou cheio de fome”.
Comentário. A fome do menino não é representada ao adulto como um intolerável vazio físico no estômago. Tampouco lhe é representada pelo lugar comum: estou morrendo de fome. A fome é precedida por vocábulo de significado oposto — o pleno. Cheio de fome, diz ele. É como se o menino estivesse a se comunicar com o andarilho ou o motorista com um vocábulo do universo deles (“cheio”). Usa o recurso retoricamente. Para melhor pintar o vazio físico (a fome) por que passa. A miséria não se representa em pública com andrajos, mas com maquiagem tomada de empréstimo a sociedade de consumo que abriga a todos. Vocábulos de sentido oposto se encontram na frase do menino. Digladiam entre eles e atingem o cidadão: estou cheio de fome. A justaposição de opostos é o real. Há certa empáfia na fala do subalterno que mitifica a solidariedade urbana e torna coesas as classes sociais pelas três virtudes teologais (fé, esperança e caridade). A figura de retórica de que se vale o menino de rua é o oxímoro.
Segunda sequência do filme. Cenário: canteiro central da avenida Delfim Moreira em dia de domingo, mal alvorece o dia. Personagens: um adulto, que caminha pela rua sem tráfego por ser dia de lazer, e dois rapazes, evidentemente suburbanos e viradores, que acabam de receber caixas de isopor com latas de cerveja para vender. Situação: à espera da multidão dos banhistas, os dois rapazes estão conversando sobre a noitada de sábado e o domingo de trabalho pela frente. Ação: o passante surpreende parte da conversa entre os dois vendedores ambulantes e escuta, dito por um deles: “Estou cheio de saudade”.
Comentário. O vazio físico é substituído pelo vazio sentimental. O observador da cena não é o interlocutor privilegiado. Ele tem de se intrometer na conversa alheia, qual um bisbilhoteiro, para surpreender essa manifestação da solidão humana em dia que deveria reduzi-la a pó, ou inibi-la. Dia do descanso semanal, de preferência acompanhado. Contra o sol que se levanta preguiçoso sobre o mar, entre a alegria ainda pouco ruidosa dos banhistas e a saudade da garota na noitada que se foi, impõe-se ao jovem, como elemento mediador, o trabalho domingueiro. O trabalho exibe o vazio da saudade pelo seu avesso na areia, ou seja, pela descontração festiva dos banhistas pequeno-burgueses num dia azul de mar. Tamanha é a saudade que preenche o vazio sentimental que lhe dá forma e sentido. Ganha corpo e lágrimas e transborda, como o mar na maré alta, pela areia da praia.
Terceira sequência. Cenário: numa sala de estar, uma poltrona iluminada por um abajur. Personagem: um homem já avançado nos anos, morador da zona sul carioca, aproveita o vazio da noite para ler. Situação: o personagem abre e começa a ler um livro de Fernando Pessoa. Mensagem é o título. Detém-se na leitura do poema “Ulisses”, homenagem ao lendário fundador de Lisboa (Ulissipona, antigo nome da cidade, significa a cidade de Ulisses). Ação: ele lê o verso: “O mito é o nada que é tudo” e se lembra dum artigo de Roman Jakobson e Luciana Stegagno Picchio, “Os oxímoros de Fernando Pessoa”.
Comentário. Nessa outra fala, agora verso de um notável poeta português, o vazio sentimental do autor e do leitor é substituído pelo vazio histórico. Desde a derrota na batalha de Alcácer-Quibir (1578), quando o infante D. Sebastião desaparece pelo areal norte-africano, Portugal nunca mais conhecerá a glória da época dos grandes descobrimentos. Com o correr dos séculos, a decadência da civilização portuguesa foi-se alicerçando na saudade e na crença de que D. Sebastião voltaria, um dia, para reatar a ponta dos tempos e reinaugurar, no presente, os dias gloriosos do passado. Pé cá no passado, o nada (a saudade dos feitos de Ulisses); pé lá no futuro, o tudo (o retorno vitorioso de D. Sebastião). Entre uma pisada e a outra, ergue-se o contraditório mito do sebastianismo. Só o mito, pelo oxímoro, pode emprestar força ao vazio do presente, relegando a segundo plano a verdade a ser revelada pela História.
Quarta e última sequência. Cenário: um escritório residencial, mesa de trabalho, mil papéis e livros esparramados numa bagunça organizada. Personagem: um professor de literatura brasileira prepara as aulas da semana. Situação: cabe ao professor preparar duas aulas sobre o messianismo no Brasil, a partir da leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Ação: devidamente alertado por vários críticos sobre uma peculiaridade do estilo de Euclides, o professor se debruça sobre a anotação de vários exemplos de oximoro no livro, entre eles o de “Hércules-Quasímodo” para caracterizar o Antônio Conselheiro.
Comentário. O vazio histórico português comunga com a atualidade do vazio existencial brasileiro. No livro de Euclides da Cunha, o sertanejo é representado pela imagem surrealista de um “Hércules-Quasímodo”. A imagem surrealista, disse Pierre Reverdy, não nasce de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Ao atar duas personalidades contraditórias, Hércules-Quasímodo contrasta o corpanzil heroico do deus greco-latino, batalhador incansável diante das doze tarefas que teve de enfrentar, com o corpo disforme e pavoroso, digno de piedade, do personagem romântico de Victor Hugo no romance Notre-Dame de Paris. Quasímodo assim se autodefine na pena de Victor Hugo: “Pareço por demais ao homem, eis a minha desgraça. Queria ser por inteiro um animal”.
À semelhança de Quasímodo, o sertanejo é, nas palavras de Euclides, “desgracioso, desengonçado, torto”, “é o homem permanentemente fatigado”. Mas atenção, alerta Euclides, “toda essa aparência de cansaço ilude”. Qualquer incidente que surja pela frente transforma Quasímodo num Hércules. Ele, então, se transfigura, empertiga-se e exibe outros relevos. Escreve Euclides: “E da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”. No sertão, onde se busca o herói da nacionalidade, está o tabaréu. No sertão, onde se encontra o tabaréu, Euclides da Cunha buscou o trágico herói da nacionalidade humilhada.
Nota final. Oxímoro — seria ele o cacoete retórico da chamada civilização luso-brasileira? Talvez sim: visão ufanista e idealizada de uma economia periférica desastrada, em que o saldo da justiça social sempre está no vermelho.
Silviano Santiago é escritor, professor, poeta, tradutor, com inúmeros prêmios.