Um dos meus maiores sonhos, quando criança, era ser filho único.
Sonho um tanto inalcançável, sendo eu o primogênito de uma prole de cinco.
Mas eu queria.
Filho único não precisava dividir brinquedo, mantinha a precedência na hora do colo, tinha para si todo o banco de trás do carro. Tudo bem que eu jamais teria sobrinhos — mas quem pensa em sobrinhos aos sete anos de idade?
Se não desse para ser filho único — e não dava —, que pelo menos eu tivesse apenas um irmão gêmeo. Idêntico. Se era pra dividir, que fosse comigo mesmo — ou com alguém igualzinho a mim. Eu teria roupas novas em dobro, receberia elogios em dobro e ainda teria em quem botar a culpa de tudo que fizesse de errado. Ok, todos esses prós poderiam se tornar contras, mas quem pensa dialeticamente aos sete anos de idade?
Eu também queria ser padre. Achava empolgante a ideia de juntar toda a cidade, nos domingos de manhã, para me ver e me ouvir. Mulheres de um lado, homens do outro (era assim, naquele tempo), a plateia me escutaria falar cinco minutos sobre uma passagem obscura dos evangelhos para depois discorrer longamente sobre as obras da igreja. No púlpito, eu exibiria notas fiscais, diria que a obra não acabava nunca por causa disso e daquilo, reclamaria do dízimo, dos óbulos, arengaria sobre o pecado da avareza e me retiraria, paramentado e satisfeito, para a sacristia.
Esse sonho arrefeceu com o tempo. Primeiro, quando, na adolescência, entendi o significado de “voto de castidade”. Depois, ao me dar conta de que era ateu.
Não que haja impeditivo para que um padre seja ateu. Não há cabeleireiros carecas, oftalmologistas de óculos ou psiquiatras que…? Bem, vocês já sabem aonde quero chegar.
Acho mesmo que um padre ateu realizaria muito melhor o seu trabalho. Estudaria com mais afinco os gestos, a impostação vocal; trabalharia mais na cenografia, na sonoplastia, na misancene.
Há décadas que não vou à missa, mas minha lembrança é de algo monótono, com um senta-levanta arrastado, músicas em que a letra não se encaixa bem na melodia, enredo previsível e um fim ambíguo (ao “Ide em paz e o Senhor vos acompanhe”, a plateia respondia com um “Graças a Deus!” que tanto podia ser de agradecimento sincero quanto de alívio irrefreável).
Eu queria ter um autorama. Sonhos assim numa família de classe média bem média podem não ser atendidos nunca.
Eu queria ser poeta, como Augusto Frederico Schmidt e Gonçalves Dias (só mais tarde fui querer ser meu quase xará Alphonsus de Guimaraens). Sonhos assim numa casa em que a poesia estava limitada aos livros escolares não vão muito longe.
Eu queria poder repetir sobremesa. Sonhos assim com uma mãe zelosa dos bons modos podem ficar para sempre no plano das ideias.
Eu queria ter um golfinho. Sonhos assim em Minas podem ser um problema sério.
O teste vocacional, aos 17 anos, indicou que eu tinha aptidão para História (inventar histórias sempre foi o melhor brinquedo), Teatro (olhaí a vocação sacerdotal disfarçada) e Arquitetura. Fiquei com esta última. Construir castelos era comigo mesmo.
Ilustração: Sydney Michelette Jr.