Na minha vida, tudo sempre aconteceu de uma forma muito natural, sem dramas, sem hesitações, sem grandes conflitos. E foi assim também que me descobri gay depois de uma casamento heterossexual, muito bem-sucedido, que me deu três filhos maravilhosos. Sei perfeitamente que assumir seus desejos mais profundos e viver uma vida sem se preocupar muito com o que os outros vão pensar não é fácil para a maioria. Reconheço que o preconceito e os padrões impostos levam muitas pessoas a fazerem escolhas que podem gerar certa acomodação. Mas essa, definitivamente, não é a minha história.
Eu me casei cedo, aos 26 anos e, em nove anos de casada, tive três filhos. Quando me perguntam se, naquela época, eu tinha alguma dúvida sobre a minha sexualidade, a minha resposta é não. Essa não era uma questão, mas, quando passou a ser, não tive dúvidas: separei-me e fui viver a minha vida do jeito que eu quis. Meus filhos ainda eram crianças, mas eles nunca foram empecilho para nada. Acho que a forma muito natural e tranquila com a qual eu lidei a vida toda com isso fez com que eles também crescessem com essa mesma naturalidade.
Mesmo a separação do pai deles, que poderia ser uma crise, não foi. Para não dizer que nunca tive nenhum percalço, meus pais, no início, não aceitaram muito bem minha orientação. Mas aí entra o papel da Fabiana, com quem sou casada desde 2017 e com quem comecei a namorar em 2011. A Fabiana é muito família, valoriza muito estarmos todos juntos e, com muita paciência e jeitinho, ela também conquistou meus pais.
Por ser tabeliã e conviver muito no meio jurídico, as pessoas se espantam quando eu trato de forma muito aberta meu casamento com a Fabiana. Mas a verdade é que não vejo o menor sentido em esconder algo que é tão natural e verdadeiro para mim. Não sei no que isso pode interferir no meu trabalho. Tem uma frase do Dráuzio Varella que acho muito válida — é mais ou menos assim: “Se você está preocupado com quem seu vizinho dorme, você tem problemas.”
Na verdade, sou uma pessoa extremamente focada no que é importante, no que estou fazendo no momento, e bem desligada para o resto. Nunca percebi nenhum tipo de preconceito. Se falam de mim pelas costas? Ah, devem falar, né? Acho que eu também comentaria. Mas nunca percebi nada, nem um olhar que me deixasse desconfortável. E acho até engraçado quando as pessoas me questionam sobre como é ser gay assumida no meio jurídico. Ora, um dos pilares do Direito é a dignidade humana e o princípio da busca da felicidade.
Faz apenas 10 anos que o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi aceito no nosso ordenamento jurídico. As leis têm que evoluir com a sociedade, o Direito não é uma ciência exata ou um saber estático e exatamente por isso é tão fascinante. Estudo muito o Direito de família para, como tabeliã, prestar um bom serviço para a sociedade e tenho dados impressionantes sobre as mudanças de hábitos e costumes que são observados nos números do cartório. Nesse sentido, o cartório é um verdadeiro termômetro social. Na pandemia, vimos explodir o número de divórcios, casais que não suportaram a convivência extrema. Da mesma forma, aumentou demais o número de pessoas fazendo testamento, planejamento sucessório deixou de ser tabu porque as pessoas se viram próximas da morte.
É um grande prazer ver que o meu trabalho é o local onde os sonhos de muitas pessoas se concretizam. Participar desse processo e poder ajudar o outro é minha maior realização. A compra do primeiro imóvel, a destinação dos bens para deixar quem amamos protegidos e a união estável são algumas das medidas que se realizam em nossos balcões e salas de atendimento. Entre elas, uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo — uma conquista da sociedade que tenho muito orgulho de promover e de fazer parte.
Foto: Cristina Lacerda
Fernanda Leitão é tabeliã do 15º Ofício de Notas há mais de 20 anos, na Barra. Ela criou, durante a pandemia, o atendimento “drive thru” para união estável. Foi procuradora do Estado do Rio de 1993 a 1998. É casada com Fabiana Boal, apresentadora do Shoptime.