Quando meu carro volta do lava-jato, é outro. Não por estar mais limpo, mas porque me estranha, e sinto como se não me pertencesse. Minhas pernas parecem longas demais para os seus pedais, meu pescoço curto de menos para o retrovisor. O rádio, até então disciplinado entre a CBN e a Bandnews, solta a franga na Super Rádio Tupi. Leva um tempo até que tudo volte ao normal, e nos reajustemos um ao outro.
Quando meus cachorros saem para os passeios, algum espírito obsessor se apossa deles. Em casa, são só carinhos e barriguinhas para cima e rabos balouçantes (menos o Tião, que é cotó, e por isso rebola). Na rua, transmutam-se em máquinas de fazer xixi, e me arrastam com ímpetos de puxadores de trenó em direção a tudo que lhes pareça território a demarcar. Aqui, fazem voto de silêncio, pobreza e castidade. Na rua, latem, rosnam, tomam brinquedos alheios e — sim, mesmo castrados — se engraçam com qualquer descendente de lobo que lhes passe pela frente. Em casa, são doçura e submissão; na rua, viram bicho.
Minha casa é minha até passar pelas mãos da diarista. Aí o pente vai para o pote da escova de dente; os livros separados para alguma pesquisa retornam à estante, em prateleiras que jamais ocuparam; a camisa efemeramente usada — e que “ainda dá pra hoje” — vai amarfanhada para o cesto de roupa suja. Não acho mais o saca-rolha, o abridor de lata (que hão de estar junto das velas, fósforos e parafusos, jamais na gaveta dos talheres). O sabão em pó e o detergente de todo dia estarão no fundo do armário, atrás da cera líquida, do lustra-móveis, da água sanitária. Toda a minha lógica é subvertida — e o ritual de pós-faxina inclui retornar as cadeiras para as laterais da mesa (a cabeceira está vaga desde que o Tião customizou a poltrona que reinava ali), os potes de ração para os lugares onde os cachorros esperam encontrá-los, as máscaras a seu posto (junto da carteira e dos documentos do carro, a fim de que uns me lembrem de não esquecer os outros), o Rivotril à gaveta dos insumos de uso diário (plugues de ouvido, magnésia bisurada, colírio, lenços de limpar óculos) e não à dos emergenciais (Arcoxia, Renitec, camisinha, Donaren).
Eu não me reconheço quando conectado a uma rede social. Ali, gente que nunca vi vem discutir comigo, com sangue nos olhos, sobre assuntos que eu trataria, de boa, em tom bem mais ameno. Será que é minha cara na foto de perfil? Ou viro um Mr. Hyde, um monstro do pântano, um parlamentar do Centrão quando estou logado — e não percebo? Será que minha escrita não traduz minha voz, e esta passa por um filtro às avessas, que em vez de retirar as impurezas, encarde o que era límpido, nubla o que era céu de brigadeiro? Quantas pessoas excluí do meu convívio social? Umas dez, se muito. Quantas no mundo virtual? Bem umas mil, numa conta por baixo. Claro, o mundo virtual é o mundo; o círculo social é um círculo, e de raio bem pequeno. Ainda assim, a desproporção é clamorosa.
Talvez a conexão com o mundo virtual nos sintonize em outro canal, desregule o banco, abaixe o encosto, nos dê vontade de sair mijando em tudo quanto é poste cone tronco grade muro. Nos faça recuperar o DNA de quando vivíamos em alcateia, nas estepes, e perder o senso do que seja essencial ou acessório, de qual o lugar de cada coisa (a poesia na prateleira de cima, a roupa suja — se “ainda dá pra hoje” é porque está suja — no cesto das roupas sujas, o saca-rolha nem junto com os garfos nem com os pregos, mas ao lado do vinho).
“Eu não sou eu nem sou o outro”, escreveu Sá-Carneiro. “Sou qualquer coisa de intermédio”. Há casulos por todo lado na minha varanda, depois de uma praga de lagartas que devorou os pés de maracujá (mais ou menos como o Tião fez com a poltrona e o sofá). Espero pelas borboletas — e pelo estofador, pelo sono sem aditivos, pela volta do diálogo, e por um lava-jato (não, não é indireta sobre a terceira via) que não mexa no dial do meu rádio.