Em tempos de exaltação à diversidade, tenho visto um aumento de algo que vai contra tudo que se prega e que tem me intrigado: o encaretamento geral. A história do meu próximo livro, “Fortia Femina”, discute esse fenômeno.
Sempre fotografei o dito “ensaio sensual feminino’’ para revistas. No ano 2000, estava em NY, e, zapeando a TV, parei num concurso feminino de fisiculturismo. Vi naquelas atletas, em seus corpos hipertrofiados, uma epifania de um novo capítulo do feminismo, uma novíssima narrativa do que convencionou chamarmos de “meu corpo, minhas regras”. Voltei ao Rio com o objetivo de fotografar essas supermulheres musculares que esculpem seu corpo num reflexo do protagonismo feminino em suas múltiplas facetas.
Em 2004, mostrei as primeiras fotos do novo ensaio já com nome — Fortia Femina — para o magistral cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Fui fotografá-lo para uma revista e, ao final da sessão, perguntei se poderia mostrar algumas imagens de um trabalho que estava iniciando. Ele concordou, e o que seriam 10 minutos de conversa se estenderam por mais de uma hora. Dr. Ivo fez todo tipo de perguntas, mostrou-me livros de anatomia, deu várias dicas, elogiou algumas decisões fotográficas e até se dispôs a escrever a introdução do livro que ainda viria — melhor, impossível.
Na busca por patrocinadores, enviei algumas cópias para um empresário do ramo de cosméticos. Dois dias depois, a secretária me chamou para pegar as fotos de volta. Recebi o envelope e, para minha surpresa, as fotos estavam rasgadas ao meio, com um bilhete: “Não patrocino esse tipo de pornografia’’. Até hoje, pergunto-me que tipo de “pornografia” eles patrocinam… Era 2009.
De lá pra cá, continuo ouvindo a frase: “Você acha isso bonito?”, num certo tom de reprovação, sempre que apresento o ensaio dessas supermulheres. Sigo também escutando as histórias de preconceito que elas sofrem enquanto assisto ao Brasil colecionar medalhas em competições femininas internacionais de fisiculturismo. Contrariando os caretas, “Fortia Femina” será lançado em 2022.
Em 2015, lancei o livro “100 coisas que cem pessoas não vivem sem”, reunindo famosos e anônimos. Tem Sônia Braga nua e coberta apenas por um véu; Zé Celso Martinez em nu frontal; a médica Michelle Ritzmann ao natural; Serguei sem calça; a prostituta Madame Bela pelada; a fisiculturista Ana Cláudia Pires; uma garota de Ipanema heavy metal com o dorso nu. Cada um deles escolheu sua pose sem medo de entregas.
2021- qualquer vislumbre de seio à mostra faz os mentores das redes sociais corarem. Outro dia, uma amiga postou uma agenda com a imagem da Vênus de Botticelli na capa, e o item foi rejeitado pela rede. Em tempo: o quadro icônico é de 1485. O que aconteceu conosco? Onde foi parar a estética despudorada e sem paranoias da década de 70 e 80? Onde está a tal liberdade de expressão?
O senso comum atual vincula o corpo, no pior viés possível, especialmente o feminino, ao desejo e ao prazer. Entendemos erradamente a nudez como noção de beleza. Beleza é um conceito temporal e transitório.
Estou criando outro ensaio para ir na contramão desse patrulhamento que está por aí. Chama-se “LiBRdade”. Gente de todo tipo “despida” de preconceito. Livre. Fotos nuas e depoimentos crus sobre o que é liberdade para cada um deles. Arte não é enfeite – é emoção, fruição e reflexão. Se é para enfrentar caretas e patrulhadores, bora tocar fogo no parquinho.
André Arruda é carioca, formado em Jornalismo Audiovisual, já trabalhou no Jornal do Brasil e no O Globo. Fotógrafo independente desde 2000, tem publicado em diversas mídias. É coautor dos livros “Blocos de Rua do Carnaval do Rio de Janeiro vol. I” (ed. Réptil, 2011) e vol. II (2013). Em 2016, lançou “100 Coisas que Cem Pessoas Não Vivem Sem”, com 100 brasileiros, mesmo ano em que foi premiado pela ANER (Associação Nacional de Editores de Revistas), como melhor capa na revista “Época”, com o retrato de uma mãe e seu bebê, sobre a maternidade afetada pela microcefalia. Para 2022, prepara o lançamento de “Fortia Femina”, e o ensaio “LiBRdade”.