Era meado de março de 2020, e a minha exposição individual “Jardim do Éden”, depois de três meses em cartaz, chegava a seu término, ocasião em que seria lançado o catálogo da mostra com uma conversa entre mim e a curadora. No entanto, três dias antes, foi decretado o primeiro lockdown. A Galeria do Lago bem como todo o complexo do Museu da República fecharam sem previsão de volta.
A exposição, fruto do cruzamento da minha poética com a história do Palácio do Catete, pré-requisito para todas as exposições que acontecem ali, teve como mote os muitos banquetes acontecidos no palácio, assim como tantos convescotes informais realizados em seus jardins. A partir de pesquisas elaboradas no acervo do museu, construí uma narrativa irônica onde procuro embaralhar a tradição judaico-cristã, as estruturas de poder, o patriarcado e o colonialismo, que ainda hoje permanecem como alicerces nefastos da nossa sociedade.
A história é contada a partir do corpo e do lugar consagrado às mulheres, territórios domésticos, secundários, decorativos… São mesas, bules, xícaras, sancas, bordados, vasos, doces, carnes, banquetes, piqueniques e mulheres a decantar as mentiras da História oficial e a escancarar uma verdade incômoda, “pero sin perder la ternura jamais”, e o humor, menos ainda.
Mas aí veio a pandemia, os meses entravam e saíam, o presente se alongava infinito, eu confinada daqui, o meu Jardim do Éden confinado de lá, e meus catálogos lindos nas caixas aguardando o fim do mundo acabar pra serem lançados. Passaram-se nove meses com a exposição montada e fechada até que, em setembro de 2020, depois de uma sutil melhora no quadro sanitário, pude entrar. Havia trabalhos emprestados e vendidos que precisavam seguir o seu caminho; assim, saíram da exposição nove pinturas.
Diante desse chacoalhão planetário, impossível não relacionar o uso predatório com o qual a humanidade se relaciona com o Planeta, com outros seres e entre si, com o surgimento de uma peste contemporânea. Mais impossível ainda é não panicar diante do negacionismo criminoso tão em voga entre robôs e robotizados, mas nem por isso menos letal pra seres humanos. Nesse contexto, exacerbam-se as injustiças históricas, frutos não só do patriarcado, do colonialismo e da escravidão, mas também das políticas neoliberais e da nova escravidão via apps. De repente, fica tudo tão claro, que cega.
Como não ficar maluca? Como lidar com a impotência total? Como aceitar o colapso da verdade e a ascensão da burrice? Como entubar um país transformado em cova?
Confinada em um apartamento superurbano, totalmente apartada do ar, da água, do mato, do céu e do sol, a memória de longas visitas ao Musée de l’Orangerie, em Paris, contemplando as deslumbrantes Ninphéas do Monet, foi o refúgio viável pra não sucumbir à loucura. Trabalhando somente no ateliê que tenho em casa, mergulhei numa série de pinturas de lagos e vegetações de cores fluidas, lisérgicas e tempo suspenso, uma espécie de vertigem necessária, onde é possível ver discos-voadores flutuando n’água e nenúfares no céu, um salvo-conduto para se passar os dias monocórdicos e perspectivar esse presente sem fim.
Assim, a primeira sala expositiva estará tomada por essa atmosfera onírica, tal qual um banquete de pratos flutuantes ofertando a natureza em consonância com o parque do Museu que adentra pelas janelas e portas, mediando assim a construção que se dá na segunda sala, onde novos trabalhos corroboram e se somam à narrativa já desenvolvida no primeiro momento da exposição.
São 10 pinturas inéditas mais três não inéditas que se juntam às 15 que permaneceram.
É fim de novembro de 2021, 19 meses após fechar, o meu Jardim do Éden, agora rebatizado com 1.2, reabre outro.
É com muita felicidade que anuncio a abertura da nova exposição e o lançamento do catálogo da exposição anterior, sábado (04/12) das 12h às 18h, com a artista, a curadora e a ”exposição in progress” inteiramente perpassadas por essa experiência radical.
Patrizia D’Angello é artista plástica. Nasceu em São Paulo, mas vive e trabalha no Rio há muitos anos. É formada em Artes Cênicas pela Uni-Rio e em Moda pela Candido Mendes. Frequentou a Escola de Artes Visuais no Parque Lage, onde fez diversos cursos. Transita pela produção de objetos, performance, fotografia, vídeo e, mais assiduamente, pela pintura. Foi indicada ao prêmio PIPA em 2012.