Um atleta foi desligado do seu clube. Não por ser indisciplinado ou perna de pau, mas por ter escrito: “’Ah, é só um desenho, não é nada demais’. Vai nessa que vai ver onde vamos parar”.
Essa declaração tem três problemas.
1. Não é “não é nada demais” (junto), e, sim “não é nada de mais” (separado). “De mais” (separado) é uma locução adverbial, e seu contrário é “de menos”. “Demais”, junto, é um advérbio.
“Eu gosto demais de café” quer dizer que gosto muito de café. “Eu gosto de mais café” quer dizer que achei pouca a quantidade que me serviram (acontece muito nos cafés dos aeroportos, onde põem só meia xicrinha pelo preço de um bule inteiro).
2. Não é “Vai nessa que vai ver onde vamos parar”, mas “Vai nessa que vai ver aonde vamos parar”.
“Onde” é advérbio e indica lugar. “Moro onde Judas perdeu as botas”.
“Aonde” também é advérbio, mas a preposição “a” indica movimento em direção a algum lugar. “Eu vou aonde Judas perdeu as botas”.
3. Por fim, mas não por último, o problema mais importante. O que haverá de tão grave num desenho que possa nos levar à beira de um precipício, à iminência de um desastre?
Um beijo.
Beijos já nos levaram aonde beijo nenhum deveria levar: à morte, no caso do beijo de Judas. Ou aonde seria bom que todos os beijos nos transportassem: ao enlevo do beijo de Klimt, à paixão do beijo de Rodin, às peripécias do beijo de Greta Garbo, à euforia do beijo do marinheiro e da enfermeira no fim da guerra.
Aonde nos levaria o beijo do filho de Clark Kent e Lois Lane, um personagem de quadrinhos filho de personagens de quadrinhos, que ainda nem existe? Talvez a um mundo onde pessoas que se amem possam manifestar livremente o seu amor.
Pois esse beijo e esse lugar (ou esse momento) assustam muita gente. Assustaram o jogador de vôlei. Ele diz que defende aquilo em que acredita. E isso é um direito seu. Assim como é direito dos patrocinadores do time não quererem ter suas marcas associadas a alguém que se sinta ameaçado por um beijo num gibi. Ou na mesa ao lado.
O atleta tem o direito de expressar seus sentimentos. E arcar com as consequências. Principalmente se seus sentimentos forem de intolerância.
Um ex-prefeito do Rio também se encrespou com um beijo de gibi. A direção da Globo vetou um beijo entre um adolescente e um peão, numa novela.
“What’s in a kiss? ”, perguntava-se Gilbert O’Sullivan numa canção com sabor antiguinho. E respondia: talvez mais que um momento de bênção, talvez mais que um momento de felicidade.
Tom Jobim diz algo parecido em “Fotografia”: “Há sempre uma canção para contar / Aquela velha história de um desejo / Que todas as canções têm pra contar / E veio aquele beijo.”
Que venham tempos em que beijos sejam só momentos de felicidade e contem aquela velha, imemorial história de um desejo que todas as canções, poemas, e romances têm para contar. E personagens da vida real e da ficção, atletas e intelectuais, super-heróis e meros mortais se beijem, se abracem, sem que isso seja nada de mais (separado) nem leve alguém aonde o atleta foi parar (na fila do seguro desemprego).
Ilustração: Sydney Michelette Jr.