Por que europeus se metiam mar adentro, em geringonças com casco de madeira e velas de pano, sem espreguiçadeira no convés ou serviço de bordo, desafiando tormentas, dragões, recifes insidiosos, maresias e escorbuto para ir ao outro lado do mundo comprar… noz moscada, por exemplo?
Ainda se fosse curry, alecrim, manjericão fresco. Mas… noz moscada?
Passei 62 anos e 5 meses sem saber que gosto tem noz moscada, e sobrevivi — assim como sobreviverei até uma semana antes da minha missa de sétimo dia sem nunca ter provado isso.
Poderia ter vivido também sem o curry, mas a vida não teria o mesmo gosto. Curry, sim, vale o sacrifício.
Uma vez, fiz as contas e concluí que, em vez de gastar com uma diarista para a limpeza, outra para passar a roupa e outro tanto com restaurante, saía mais em conta contratar uma empregada doméstica, que viesse todos os dias e fizesse todo o serviço.
Consegui uma senhora simpaticíssima, que não limpava bem, passava mais ou menos e tinha alguma boa vontade na cozinha. Pelo que eu ia pagar (o mínimo da categoria), era um acordo justo.
Ela fazia o trivial, e apresentei a ela algumas perversidades que eu tinha no armário (açafrão, páprica, cúrcuma, cardamomo, lemon pepper, fines herbes), para que ela pudesse ir além do sal e do Arisco.
Pois ela se encantou com o curry. Fazia feijão ao curry, arroz ao curry, batata ao curry, omelete ao curry. Durante os dois meses em que durou a experiência, o consumo de curry aqui em casa deve ter empatado com o de Bombaim. (Que ainda não era Mumbay na época, eu acho).
Claro que não era só a noz moscada que intrigava. Grandes navegadores se abalavam da Europa até o que hoje é a Indonésia para comprar… cravo da Índia. Logo o cravo, que estraga qualquer receita e deixa tudo com gosto de dentista.
Os cravos valiam mais ou menos seu peso em ouro. Eu pagaria em bitcoin para não ter nunca que cravar meu dente num deles. Cravo é o pimentão dos temperos: se ele entra pela porta, todo os outros sabores fogem pela janela.
Pode ser que cravo e noz moscada fossem não só um tempero, mas uma espécie de genérico para coisas que não existiam à época, como mertiolate, penicilina, viagra, xampu anticaspa, repelente de insetos, errorex. Vá saber.
Outra coisa que não entendo é o sacrifício de virgens quando havia secas, enchentes, epidemias, ou vulcões em erupção. Por que virgens, havendo, certamente, mulheres de Escorpião, que se prestariam muito melhor à missão de apaziguar a ira divina?
Povos que sacrificavam seres humanos aos deuses não deviam ter deuses lá muito polidos, sensatos e focados na evolução espiritual da espécie. Uma virgem — titubeante, inexperiente, sem jogo de cintura (literal e metafórico) — só iria irritar ainda mais as potestades. Já uma mulher de Escorpião chegaria chegando, mostrando que vulcão era fichinha e aí, sim, os deuses iam saber o que é um tsunami, um vendaval, um chacoalhar de umas placas tectônicas.
Também nunca entendi por que a língua portuguesa dificulta tanto a nossa vida. Era muito mais fácil ter só um “why” e um “because”, bem definidos, para ninguém ter dúvida. Complicar por quê? Ainda vou tentar entender a sedução da noz moscada, a tentação do cravo, o mistério do sacrifício das virgens. A minha paixão por curry, não — porque não há resposta para todos os porquês.
Ilustração: Sydney Michelette Jr.