Costumava cruzar, toda manhã, com um casal que também parecia gostar de acordar cedo e dar uma volta.
Ela, bem velhinha. Ele, velhíssimo.
Caminhavam lentos, de mãos dadas — ele, amparado na fragilidade dela; ela, sustentada pela debilidade dele.
Não vou negar que uma névoa de inveja se insinuasse por dentro de mim.
Estavam lúcidos, ambos. Andavam no mesmo ritmo e pareciam estar conversando o tempo todo. Ainda não haviam se cansado um do outro, ainda tinham o que dizer naquelas longuíssimas caminhadas (longas no tempo que levavam, não na distância percorrida).
Muito brancos, os dois. Sempre de calças compridas, camisas de mangas compridas, tênis, chapéu. Mãos e rosto rescendiam a protetor solar.
Vi-os algumas vezes sentados nos bancos que há ao longo da calçada, talvez tomando fôlego, talvez tomando sol, talvez se sentando apenas porque é para isso que servem os bancos.
Reduzi o passo uma vez, curioso para saber do que falavam.
Em vão: falavam em alemão.
Um dia, pela primeira vez, a vi sozinha.
Silenciosa.
Não amparava mais: vinha ela própria se amparando numa bengala.
Não soube o que houve com ele.
Foi quando a inveja deu lugar à compaixão. Por ela estar agora só, sem ter em quem se apoiar no caso de uma queda, tendo que responder ela mesma às perguntas que fizesse, e se indagar que perguntas ele faria.
Passei a acompanhá-la à distância, reduzindo o passo e refreando os cachorros, anjo da guarda improvisado para o caso de uma raiz de amendoeira lhe tirar o equilíbrio, uma pedra solta no piso a levar ao chão, um ladrão lhe vir arrancar a bolsa que trazia apertada ao corpo.
Emparelhei com ela algumas vezes. Arrisquei um “Bom dia! ”, envergonhado de um “Guten Morgen” vir a iniciar uma conversa que eu não conseguisse levar adiante. Ela me respondeu em português perfeito, com um sorriso nos olhos e nos lábios e na voz.
Os “bons dias” se sucederam, sem que eu tivesse coragem de perguntar quem era ela, que histórias guardava, em que pensava, se não queria dividir comigo “eine Tasse Kaffee”. Se não podia me deixar gozar com ela de um pouco da lucidez que se esvaiu da minha mãe, se me permitiria cuidar dela cinco minutos por dia e ter com ela as conversas que emudeceram quando minha mãe perdeu a voz, o sorriso, o olhar.
Encontrei-a com frequência — sozinha — na padaria. Uma média de café com leite, um pão com manteiga mastigado lentamente com as gengivas.
A padaria fechou.
Como numa foto que desbota com o tempo, a senhora de olhos claros, pele clara, moletom, bengala, chapéu e passos suaves, também se apagou das minhas vistas, dos meus passeios matinais.
Passeio agora, sozinho, com os cachorros. Sozinho, não: com todas as perguntas que queria ter feito, todos os sorrisos que poderia ter-lhe dado, todas as histórias que jamais ouvirei.
Ela nunca soube que me protegia da solidão.
Ilustração: Sydney Michelette Jr.