Acho que o maior aprendizado deixado pela covid foi nos haver com a nossa pequenez frente à potência dessa pandemia e a nossa grandeza diante de tantas adversidades. Fomos impelidos a nos reinventar como indivíduos, como membros das nossas famílias, como pais e mães de filhos que assistiam com olhos ávidos à nossa perplexidade diante de desafios diários.
As guerras mundiais e outras pandemias de saúde pública já haviam nos demonstrado, mais de uma vez, o tamanho do estrago emocional que surtos desse porte podem deixar em cada um de nós. O curioso é que ninguém consegue sair ileso de uma experiência como essa. Fomos, de certa forma, transformados pelo lado de dentro e nos vimos obrigados a tomar novos formatos e novas maneiras de funcionamento caso quiséssemos sobreviver psiquicamente. A resiliência que existe no ser humano deu conta de nos ajudar a atravessar dezenove meses de lutas contra o próprio vírus e sequelas que já seriam esperadas, deixadas pela pandemia.
As alterações neurológicas e psiquiátricas mais observadas foram: certa dificuldade no processamento de informações, falta de atenção, raciocínio mais lento e pequena alteração na memória, todos sintomas comuns a quadros de depressão, mesmo os mais leves. Observamos também um incremento em quadros de ansiedade generalizada, sintomas obsessivo-compulsivos, insônia e o próprio transtorno de estresse pós-traumático. A boa notícia é que, apesar da negligência com que a saúde mental foi tratada durante a pandemia pelas autoridades, cada um de nós compreendeu e vem em busca de tratamentos adequados individuais. Existem serviços de saúde de todos os tipos e para todos os bolsos. Não há razões para quem quer que seja fique desassistido. Os tratamentos são multidisciplinares porque reúnem muitas vezes a Psicoterapia e o uso de medicamentos por tempo determinado.
O movimento nos consultórios de psiquiatras e psicoterapeutas aumentou muito. Aumentaram também os conflitos internos vividos por cada membro da família. Aquilo que não vinha funcionando veio à tona, mas alguns relacionamentos também estão saindo melhores disso. Estamos tentando ressignificar a vida. Depois de uma vivência dessa magnitude, estaremos ainda mais aptos a enfrentar adversidades.
Uma retórica um pouco preguiçosa dentro de nós provocou-nos questionar nossos ideais até aqui, nossa maneira de viver, nossos valores, nossa qualidade de vida, nosso custo/benefício numa equação interna que confronta escolhas e concessões. Finalmente, a percepção de que nosso controle sobre o que nos cerca é bastante limitado e relativo faz cotejar dentro de nós um sentimento de solidão e, até, de menos valia. Se nos apropriarmos dessa impressão — que é um engano — de que estamos isolados e afastados do resto, perdemos uma oportunidade, talvez única, de nos “assenhorar” do maior patrimônio que possuímos, que é o nosso livre-arbítrio; é ele que nos legitima. Somos nós que escolhemos quais ideais desejamos cumprir, de que maneira queremos alimentar-nos, que mídias optamos por assistir e ler, quem gostamos que esteja ao nosso lado…
Nos dias atuais, acho que já conseguimos compreender que fomos absolutamente surpreendidos; de certa forma, isso vem transformando cada um de nós. Já não mais debaixo de escombros, hoje temos, individualmente, a capacidade de interromper esse combate e fazer um balanço dessa operação.
Psiquicamente, fomos feitos para sobreviver; fisiologicamente, também. Isso significa dizer que, mesmo em situações de muita precariedade, o próprio organismo é capaz de substituir órgãos disfuncionais, e a própria mente humana trata de refazer sinapses, ressignificar eventos e carreiras, encontrar novos caminhos…
Acho que, apesar de todos os danos, saímos mais empáticos disso tudo que o mundo vive simultaneamente.. A mais longínqua aldeia na Ásia sofre da mesma maneira, e, ao mesmo tempo que nós, as consequências, ansiedades e temores dessa pandemia. Isso, de certa forma, aproxima-nos e faz validar em nós uma real experiência de empatia ou de humanidade: precisamos uns dos outros.
Cynthia Bezerra é psicanalista clínica pelo Corpo Freudiano do Rio de Janeiro e psicóloga hospitalar pela Santa Casa de Misericórdia. Autora do livro: “Consultório de Psicologia”, 2018.