“Tão próximo dos Estados Unidos e tão longe de Deus” — de uso corrente no México, o provérbio faz mais sentido em Cuba. Não é comum que o observador brasileiro se dê conta de que Cuba está apenas a quilômetros de Miami e tem as parcas riquezas naturais de pequena ilha do Caribe.
Ainda que turística, uma viagem à ilha lhe indicaria que lhe faltam as generosas condições ambientais que são indispensáveis à produção natural de eletricidade e de gasolina. As duas primeiras e mais ambicionadas e custosas fontes de energia dos tempos modernos.
A ilha tem poucas elevações na paisagem e praticamente nenhum rio do porte do S. Francisco, nosso rio de integração nacional. Jazidas de petróleo? Apenas em curta faixa litorânea, entre Havana e Varadero. 145 quilômetros!
Sem as quedas d’água e sem o rio S. Francisco, Cuba fica sem as hidrelétricas de Sobradinho, Apolônio Sales, Paulo Afonso (I, II, III e IV), Luiz Gonzaga e Xingó.
Sem as pródigas jazidas de petróleo em terra ou no litoral, hoje vilipendiadas pelos ambientalistas, Cuba ficou sem a exploração do combustível e de gás natural. Perdeu o bonde da história latino-americana. Ficou sem a PEMEX (Petróleos Mexicanos) e sem a Petrobrás, para ficar com exemplos modestos e caseiros.
Ficou à mercê da importação de gasolina e gás natural.
Como ser uma nação soberana sendo sem? Parece frase de Graciliano Ramos ou verso de João Cabral de Melo Neto sobre a miséria na região da seca.
Pensem também em fotograma de filmes de Glauber Rocha em que seria falsa a imagem de Antônio das Mortes a caminhar ao lado de um posto de gasolina, onde tremula ao alto o oval da Esso. Pensem, ainda, num país latino-americano onde os estudantes de minha geração não tenham tido a oportunidade de gritar em praça pública, “O petróleo é nosso”. O petróleo é vosso.
As duas modernas fontes de energia andam de braços dados e têm de ser acolhidas no cais do porto.
Solitárias, as duas têm de ser cosmopolitas. Elas se representam por mensagens sucessivas e decididos gestos de solidariedade internacional, enviados da Casa de las Américas e por ela recebidos. A Casa é uma espécie de ministério das relações culturais da ilha no exterior. Durante décadas, ela tem feito um trabalho formidável de aclamação dos talentos excepcionais, já consagrados, e de incentivo aos novos talentos.
O apagão elétrico em partes da ilha, que começou a ser recorrente do momento em que a União Soviética se desintegra em 1991, continuará a imperar no século XXI pela carência de petróleo. No auge de uma das crises, o apagão elétrico durou 16 horas. Une-se a fome com a necessidade de comer.
Gasolina e energia elétrica. Fora da ilha, um-mais-um, dois. Na ilha, um-menos-um, zero. Fora e dentro, eis o respectivo funcionamento das operações de somar e de diminuir em matéria de energia moderna. Pensamento mais básico e rigoroso, impossível.
Cuba tem todos os motivos que os países do Primeiro Mundo arrolam — e até o Brasil neste ano da Graça de 2021 — para justificar a produção no próprio solo de energia nuclear. O sonho passou pela cabeça do líder. Refiro-me à Central nuclear Juragua. O projeto foi dado por abandonado no ano de 2000. Desde então, a ilha não tirou mais a carta nuclear da manga nem abriu o bico.
Funcionam as usinas termelétrica, modestamente. Hoje em dia, elas se transformam em bioelétricas. Passarão a se alimentar de lenha de marabu e bagaço de cana-de-açúcar. A transformação se dá graças a financiamento estrangeiro.
Financiamento norte-americano não virá, por decisão apriorística do país vizinho. O embargo econômico. Consulte-se o dicionário: Embargo econômico é uma sanção que consiste em restrições ou proibições de comércio e de comercialização para setores, mercadorias, serviços, entre outros segmentos, de algum país específico.
Estamos diante de um fato concreto. Se a ilha quiser ir adiante, qualquer movimento em prol da modernização, ou da industrialização, terá de contar inicialmente com o auxílio financeiro externo, a que faltará sempre a mais próxima das grandes nações mundiais.
Continuo a copiar do dicionário: O embargo econômico é tido como uma medida de natureza extrema, uma vez que acaba por afetar a economia de um país.
Progresso econômico? Só é possível à míngua da produção de duas energias essenciais na modernidade. À governança da ilha, tornou-se imperativo o progresso de caráter social. Há que ser pobre, não há remédio. Ter, então, a mente instruída e o coração e os pulmões saudáveis.
No conjunto das nações latino-americanas favorecidas por Deus impressiona o que a ilha-sem tem feito em matéria de educação e saúde em ensino e pesquisa.
Que o observador brasileiro se lembre do programa “Mais Médicos”, com a antiga boa vontade ou a recente má vontade. Os cubanos foram contratados para preencher buracos na clínica médica oferecida pelo Estado nas regiões interioranas da nação. Entre os anos de 2013 e 2018, o programa foi eficiente. Por ato do novo governo central, termina em momento inapropriado. Seu final coincide com as vésperas da pandemia.
Qual das nações latino-americanas teria formado o bom número de médicos que lhe possibilitaria a oportunidade de exportá-los a nações mais ricas e poderosas? Que profissional teria o fair-play suficiente para aceitar trabalhar em condições ditas hospitalares, semimiseráveis? Mais importante: que médico estrangeiro mostraria interesse em clinicar no interior brabo da floresta amazônica?
(Em contraponto, pense-se no principal motivo que leva médicos estrangeiros a irem clinicar nos Estados Unidos da América.)
A má vontade brasileira com a ilha faz piada com a expressão “diplomacia médica”. Seria ela menos qualificada que a diplomacia financeira ou a intervencionista, exercida por outras nações no Brasil?
A ilha não faz feio num mundo que elegeu a palavra empreendedorismo como único ponteiro na bússola do progresso econômico, controlado pela bolsa de valores e por ela medido.
Há que conceber o modo associativo pelo qual o cidadão — e por cidadão entendo a família cubana — possa sobreviver só com os próprios e reduzidos recursos materiais de que a nação dispõe. Houve um período de relativa euforia nacional. A União Soviética pôde contrabalançar a pobreza comunitária, trocando petróleo pelo açúcar, cuja produção chegou a ser mais abundante.
Não arrolo essas situações concretas (embora passageiras) de equilíbrio com a finalidade de elogiar. Arrolo-as para descrever uma condição de vida cotidiana humana que, em noticiário de televisão, não faz o feio que faria se estivesse a exibir cenas de rua numa metrópole brasileira, onde no inverno voltaram a circular os pés descalços e a roupa reduzida de algumas e de alguns.
Por não ter sido favorecida pela mãe moderna da Natureza, Cuba tem assumido a vocação agrária. Como ir além da fase agrária no ciclo econômico moderno? Como a ilha se industrializar se só nos tempos renascentistas é que foi favorecida pela mãe Natureza por ser naturalmente um acolhedor e estratégico porto? A baia de Mariel emerge isolada no Caribe, ao lado das Três Américas continentais.
Em época não tão distante, o governo central brasileiro tentou ajudar a resolver o desequilíbrio histórico cubano, acentuado nos tempos modernos pelo embargo econômico. Contribuiu com ajuda financeira na construção do moderníssimo Porto de Mariel.
Ao contrário do que dizem as fake news, “o empréstimo para as obras no Porto de Mariel foi consolidado em cinco acordos assinados entre 2009 e 2013, que estipularam um prazo de 25 anos para o governo de Cuba pagar a dívida” (cito O Estado de São Paulo, “Checagem de fatos e desmonte de boatos”).
Assim caminha a humanidade. E o Brasil durante a pandemia.
Na distribuição de rios e de jazidas de petróleo, a mãe Natureza não foi pródiga com todas as nações do mundo. Sem dúvida, foi menos pródiga com a ilha e a cumulou, como ao Haiti, de tempestades e de tufões.
Tempestades, tufões e até terremotos rondam as ilhas do Caribe como se fantasmas que emergem das placas tectônicas do empobrecimento maior, ou dos atuais desastres ecológicos. Pensem no Haiti e em Porto Rico e pensem no que o governo cubano tem feito.
O embargo norte-americano ao governo revolucionário cubano vem sendo aplicado desde 1962. Hoje, ele se autoafirma pela obediência estrita das cidadãs e dos cidadãos a seis leis.
Dentre elas, a Lei Helms-Burton, de 1996. Ela restringiu ainda mais cidadãs e cidadãos de fazer negócios em ou com Cuba, e determinou restrições ao fornecimento de assistência pública ou privada a qualquer governo sucessor em Havana, a menos e até que certas reivindicações contra o governo cubano fossem atendidas.
Em 1999, o presidente Bill Clinton expandiu o embargo comercial, proibindo também as subsidiárias estrangeiras (de empresas americanas) de negociar com Cuba.
Exceções foram abertas pelo penúltimo presidente democrata. As regras antigas voltaram a triunfar durante o governo do republicano que o sucedeu. O embargo econômico está nas mãos de presidente recém-empossado.
A matéria embargo é tão complexa e tirânica que historiá-la levaria páginas e mais páginas sobre a injustiça que se comete contra o povo cubano, sustentada evidentemente pelas irmãs e irmãos exilados que moram e votam, em particular no estado da Flórida.
Imagino. Como salvar o leitor de páginas e páginas sobre o infindável embargo? Escritores sabem que, paradoxalmente, a metáfora se distancia do longo discurso explicativo para revelar seu significado profundo pelo súbito assombro de uma única imagem solar, de ofuscante beleza.
Como metáfora do embargo econômico, escolho um dos primeiros filmes de Steven Spielberg. Em inglês, The duel, em português, Encurralado. É de 1971 e, de vez em quando, é exibido na nossa telinha. Para ser bem objetivo, copio o resumo do press release.
Inspirado em fatos reais, a ação do filme se desenrola em estradas quase desertas. Retrata o duelo anônimo entre um motorista de caminhão, que aparenta ter uma irresponsabilidade inconsequente pela vida humana, e um pacato vendedor de aparelhos eletrônicos. Para reforçar sua intenção, Spielberg faz questão que o rosto do motorista do caminhão não apareça em momento algum do filme.
Na hora do remake pela metáfora, a câmara cinematográfica só deve focar o rosto do caminhoneiro irresponsável e inconsequente.
Silviano Santiago é escritor, professor, poeta, tradutor, com inúmeros prêmios.