A VIII Conferência Municipal de Saúde de Búzios aprovou, no dia 20 de agosto, que sejam receitados medicamentos à base de Cannabis Sativa L. no atendimento da rede de saúde do município. O assunto foi aprovado por unanimidade. A cidade, primeira do Brasil a dar esse passo, vai incluir a Cannabis medicinal na Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME). Foi um passo muito grande para a disseminação do saber médico sobre o uso dessa planta, usada como atenuante das mais variadas enfermidades e que é milenar nas medicinas de todo o Planeta. É a popular e maltratada maconha, a Geni das plantas. Da criança ao idoso, ela pode ser uma aliada dos tratamentos convencionais e se tornar uma agente de alívio para muitos quadros de saúde.
Essa aprovação é fruto de um trabalho de resgate em razão da proibição que começou na década de 30 do século XX. Depois de dez mil anos de serviços prestados, a maconha foi banida por razões político-econômicas, sem nenhum motivo científico real, baseando-se apenas em teorias racistas e eugênicas da época.
Um sonho necessário é o reconhecimento social do mal que a proibição causou e ainda causa na população negra, em especial na mulher negra — das mulheres encarceradas ali, 65% estão por questões das drogas, quase todas presas por associação ao tráfico ou porte. Precisamos entender a questão do abuso de drogas como algo relacionado à saúde, e não mais criminalizar o ato social de uso em si. Perceber que usuários abusivos precisam de tratamento, e não de encarceramento, visto que toda a rede de pobreza associada e explorada pelo tráfico de drogas pode dar lugar a uma rede sustentável de produção orgânica de cannabis nas favelas, com a Fiocruz absorvendo essa produção e produzindo óleo barato e nacional para ser distribuído tanto em Búzios como em cada secretaria de Saúde do Brasil.
É um sonho e é possível.
Impossível é apagar a natureza e a ciência… estas não desistem fácil!
Nos anos 60, a Cannabis ganhou evidência com o isolamento dos seus compostos pela equipe do pesquisador israelense Raphael Mechoulam. Nos anos 70, fora dos guetos, seu uso ganhou força no movimento Hippie e na contracultura da época. No início dos anos 80, com pesquisas do professor brasileiro Elisaldo Carlini, da UNIFESP, comprovou-se seu efeito anticonvulsivante. E volta à cena no início dos anos 90, com a descoberta do sistema Endocanabinoide, novamente com a equipe do Prof. Mechoulam.
Sim! Nosso corpo produz uma espécie interna de cannabis, com as mesmas características químicas presentes na planta. Esse sistema bioquímico faz a regulagem de todos os outros sistemas de vida no nosso organismo. Descobriu-se que temos receptores naturais para os componentes da planta e análogos químicos que nosso corpo produz. Em uma relação de fechadura e chave, o nosso corpo (endo) e a planta (fito) têm as chaves para essas nossas fechaduras químicas. Portanto, Endocanabinoides podem ser regulados com a ingestão dos Fitocanabinoides.
A partir dos anos 2000, a Cannabis foi redescoberta com a popularização do acesso à Internet. Charlotte, a garotinha que deu fama ao óleo, e Rick Simpson, um senhor que curou seu câncer de pele fazendo seu extrato, são nomes que hoje viraram marcas de óleo de tão importantes que foram na onda de liberação da saúde, da vida. Desde 2013, de uma forma mais evidente no Brasil, lutamos para aprovar mudanças nas leis para que a maconha deixe a prateleira da proibição onde ela foi colocada. O início se deu nos EUA, em estados mais flexíveis e livres na pátria da liberdade. Aqui, no Brasil, chega através da Anny e da Sophia, duas meninas portadoras de síndromes raras, com suas mães que, em busca da saúde dos filhos, encontram a Cannabis como alento. Existem documentários na Internet, contando a história de todos eles.
De lá pra cá, associações de pacientes foram criadas, dezenas de seminários, cursos, palestras, eventos acadêmicos em geral foram feitos, instituições públicas fizeram seus grupos de estudo e trabalho sobre o tema, e empresas passaram a enxergar o milionário e inexplorado mercado da Cannabis medicinal no Brasil. Além disso, houve a aprovação do PL399/15, que não contempla tudo que precisamos a título do real resgate sobre o assunto, mas é consenso que será um enorme avanço para o tema em nossa sociedade. No Rio, a Lei 8.872/20 trata da difusão de informações, apoio e suporte técnico institucional para pacientes, seus responsáveis e associações de pacientes que utilizam a Cannabis medicinal e a produção de pesquisas científicas direcionadas a pacientes nos casos autorizados pela ANVISA. Uma lei que incentiva a pesquisa é mais um avanço no processo.
Outro aspecto importante a se considerar é que não faz sentido um país com o nosso potencial agrícola desperdiçar um commodity tão amplo como a versão industrial da Cannabis: o cânhamo, que ajudou a humanidade nas velas e cordas das caravelas, sendo o tecido que conseguia aguentar os fortes ventos dos oceanos. Além da importância histórica, ele tem potencial para ser um dos facilitadores na luta contra a poluição, promovendo fontes de energia alternativas e sendo um purificador do solo envenenado. O cânhamo pode movimentar bilhões de dólares numa indústria de extração e insumos, como óleo combustível e fibras ultrarresistentes e de baixo custo. Isso pode acontecer com a simples autorização para que se plante em solo brasileiro de forma profissional e industrial, algo que seria ótimo para a ecologia nos próximos anos.
Costumo dizer que nem rico pode pagar o tratamento nas circunstâncias atuais. Com uma receita médica, é possível comprar, nas farmácias comuns, 30 ml de óleo por 2.800 reais. Essa quantidade, às vezes, mal dá para uma semana de tratamento. Requerer um habeas corpus para plantar seu próprio remédio é possível, mas ainda é para poucos selecionados. Algumas associações de pacientes decidem enfrentar as leis injustas, fazendo o óleo artesanal para seus associados e vão existindo num limbo legal, que não dá uma sensação de segurança jurídica plena. Apenas cerca de 400 pessoas têm esse direito numa sociedade do tamanho da nossa. Por outro ângulo, 400 pessoas físicas já plantam maconha legalmente no Brasil!
Ao meu ver, a única forma de deslancharmos o tema é através da educação. A especialização que coordeno procura dar uma visão bem ampla das áreas da Saúde e do Direito nas quais a Cannabis se relaciona. Todas as áreas de Saúde têm aulas específicas das suas aplicações. Medicina, Odontologia e Veterinária são profissões autorizadas a prescrever. As outras áreas da Saúde, como Psicologia, Nutrição, Enfermagem, Fisioterapia, já possuem saberes específicos no assunto. O Conselho de Psicologia de Minas Gerais possui uma comissão de Psicologia e Cannabis. Ouso dizer que estamos avançando, mas a passos ainda muito lentos.
Meu caminho no tema é esse. Minha tese de doutorado foi sobre o tema. Ajudei a construir o primeiro curso do País, da Associação Abracannabis no Rio, em 2016. Além disso, em 2019, criei o curso de verão, de extensão e a nossa pós sobre sistema Endocanabinoide na Universidade Santa Úrsula, onde atualmente dou aulas de Psicologia e Supervisão Clínica. É trabalhoso e gratificante. A única apologia que o nosso discurso faz é à vida e ao bem-estar: ao alívio da dor, ao conforto físico mental que doentes crônicos encontram na maconha terapêutica. O saber científico é nosso cartão de visita e a educação, o caminho.
Há muito o que debater, acima de tudo do que se ensinar sobre o assunto. A única forma de combater a escuridão é com a luz da ciência honesta e humanista. Sempre digo que é um trabalho que continuará depois que partirmos, porque mudanças assim, em uma sociedade tão difícil para mudar suas searas e cenários, demoram demasiadamente e podem chegar a desanimar até os mais otimistas. No seminário que aconteceu no Museu do Amanhã, em 2018, eu disse que a maconha era o cavalo vegetal da humanidade, por tudo que ela nos ajudou até ter sido proibida. Nosso desafio é usar a educação de forma transdisciplinar para acelerar o fim do preconceito e da proibição. Quem tem dor tem pressa.
Lauro Pontes é doutor em Psicologia, professor e supervisor clínico, pesquisador acadêmico e criador e coordenador da primeira pós-graduação latu sensu em Cannabis Medicinal do País na Anima/inspiralli-SP. É autor do livro “Maconha terapêutica”.