Que percentual da população suíça pode se dizer milionária? Sei lá. Mas se a questão for em relação aos venezuelanos, a resposta é inconteste: 100%.
Não são muitos os suíços que têm um milhão de francos, mas qualquer venezuelano tem um milhão de bolívares — se bobear, no bolso de trás.
Claro que não há bem que sempre dure, e o governo Maduro resolveu reduzir drasticamente o número de milionários, bilionários e trilionários do país. Confiscando a poupança, como fez um certo governo sul-americano décadas atrás? Não. Apenas cortando meia dúzia de zeros na moeda.
Cortar zeros é uma prática muito comum em governos que deviam é cortar despesas, subsídios e burocratas incompetentes. Mas convenhamos que os zeros oferecem menos resistência. Tanto que, de 2008 para cá, a Venezuela já cortou 14 zeros. O bolívar digital, que estreia agora, equivale a 100.000.000.000.000 bolívares sem adjetivo de 13 anos atrás.
Mas não estou interessado no bolívar, no bolívar soberano, no bolívar digital, nem no bolívar quântico, que virá a seguir (alguém duvida?). Já convivi com o cruzeiro, o cruzeiro novo, o cruzeiro de novo, o cruzado, o cruzado novo, o cruzeiro outra vez, o cruzeiro real e, finalmente, o real. Essas, as moedas oficiais. Lá em casa, desde que eu me entendia por quase gente, usávamos mesmo eram os contos de réis.
Cresci ouvindo que algo custava 200 contos, ou que aquilo não valia 10 merréis — fosse qual fosse o nome científico do papel moeda vigente à época.
Os contos podiam ser simples ou de réis, dependendo da quantia, da solenidade do momento e do falante. O conto era para o que realmente contava; os merréis eram a medida do desprezo.
E nada me convencia de que 10 merréis valessem dez vezes mais que mil réis. Mil réis tinham dignidade, eram mil vezes alguma coisa (e essa coisa era — pasme! — um real, não um rel). Já 10 merréis eram menos que um tostão.
Tostão não era exatamente uma unidade monetária. Pertencia à família do vintém, na qual se media o incalculável. Soube depois que o tostão vinha de “testone”, nome dado às moedas que traziam numa das faces a efígie (ou, no popular, o cabeção) de algum monarca. E que vintém era um vinteno, a vigésima parte do cruzado (o antigo, não o do Sarney).
Bem diferentes do tostão e do vintém, moedas inconversíveis, eram o cabral e, mais tarde, o barão — apelidos carinhosos. “Toma um cabral” e “Lá vai barão” são do tempo em que fingíamos ter intimidade com o dinheiro. Já ouviu alguém dizer “Fica com um guará aí”? Pois então.
Mas meu maior aprendizado foi com outro papel-moeda.
Me lembro do dia em que minha mãe usou pela primeira vez um talão de cheques. Era, pelo que entendi (eu tinha uns 8 anos) uma espécie de dinheiro feito em casa. Coincidiu de, nesse dia, o barbeiro ter ido nos tosquear em domicílio.
Por exigência do meu pai, tínhamos a cabeça raspada à la Príncipe Danilo (quem souber o que é isso é porque já tomou a segunda dose há muito tempo). Após a choradeira de praxe (odiávamos cortar cabelo, e, mais ainda, aquele corte ridículo), minha mãe sacou do talão, preencheu o valor e efetuou o pagamento.
Minhas fungadas foram substituídas pelo encantamento. Eu não sabia que havia uma Casa da Moeda, mas entendi que minha mãe era, com uma caneta na mão, uma Casa da Moeda em pessoa. Bastava escrever um número, assinar e… podia pagar o barbeiro, adquirir duzentas latas de pêssego em calda, comprar um carro, um submarino, uma casa na Flórida com golfinhos no quintal (ser fã de Flipper e morar no interior de Minas não era justo).
Por que minha mãe desperdiçava uma folha preciosa daquelas com alguns merréis (tenho certeza de que depenar três crianças indefesas não deveria custar mais que uns merréis) em vez de preencher logo com um milhão de cruzeiros e mudar nossa vida? Um milhão? Não: dois. Vinte. Duzentos. Novecentos. Novecentos e noventa e nove. Nove milhões — bilhões, trilhões — e novecentos e noventa e nove… Entrei numa espiral vertiginosa para descobrir qual o maior número que existia para que minha mãe preenchesse o cheque com ele — e esse número me escapava.
Não era como no alfabeto, em que o Z era o limite. Ou nosso quintal, que da cerca não passava. Os números pertenciam a outra categoria.
Cruzeiro, cruzado, barão e, agora, real me ensinaram sobre o custo das coisas.
Tostão, vintém e merréis, sobre o seu valor.
Com o cheque, aprendi sobre o infinito.
E a lidar com a frustração, quando minha mãe me explicou que só podia escrever no cheque o equivalente ao que tivesse previamente depositado no banco.
Como os venezuelanos de hoje, fui um milionário virtual — e por um mísero dia. Com a diferença que Maduro vai cortar os zeros. E eu tive, a contragosto, que cortar os noves. Não meia dúzia, mas centenas, milhares de noves com que preencheria cada folha de cheque. Os noves mais minúsculos que conseguisse, para que coubessem mais — e jamais caberiam todos.
O cheque me ensinou também a ganância. Que dinheiro na mão é vendaval. E que quem nasceu pra tostão não chega a vintém.