Algumas vezes (ok, muitas vezes) me refiro de modo pouco lisonjeiro ao condomínio onde moro. É o meu microcosmo, o universo que observo mais de perto, com olhos de águia, ouvidos de morcego, olfato de elefante e implicância de pinscher.
Com a pandemia e o romiófice, passei a me sentir como o personagem de James Stewart em “Janela Indiscreta”, do Hitchcock. Praticamente trancado em casa (com incursões pela calçada e ciclovia para passear os cachorros, e olhe lá), acabo vendo o que não devo, ouvindo o que não quero, metendo o nariz onde não sou chamado. E, claro, implicando com alguma coisa.
Descontando os assaltos à mão armada e à luz do dia, aqui é relativamente seguro. Fui atropelado uma vez por playboys fazendo “pega” (a ideia, soube depois, não era propriamente atropelar pedestres, mas apenas derrubá-los com o impacto — por isso a brincadeira se chamava “boliche”). Acontecia com regularidade na minha rua. Se por um lado ganhei hematomas, por outro fiquei com um retrovisor de herança (ele foi arrancado com o impacto nas minhas costelas). Tirando isso, e um ou outro “racha”, as ruas do entorno são tranquilas.
E arborizadas. Basicamente com amendoeiras, cujas raízes trincam e soerguem as calçadas (convidando os idosos a um contato mais direto com o chão). Elas também enchem de folhas os bueiros e fazem a delícia dos morcegos (os únicos a consumir seus frutos). Isso significa topar frequentemente com um parente do Bruce Wayne dependurado no chuveiro ou dando rasantes pela sala. No começo, era apavorante. Depois continuou sendo, mas a gente se acostuma. Afinal, dormir com um morcego no quarto é melhor que não conseguir dormir por causa do baile funk na churrasqueira — é ou não é?
O comércio é variado e tem quase tudo por perto. O supermercado, tirando o mau atendimento e os preços meio exorbitantes, é bom. E sempre mais vantajoso que a feira livre dos sábados, na qual o preço é exorbitante em dobro — mas, ainda assim, um terço do cobrado na feira orgânica das quintas.
Há uma praça bem cuidada (duas vezes por ano, pelo menos), com uma ala ocupada pelos cachorros e seus tutores (ou pets e seus pais, como queiram) e outra por pessoas em situação de rua (tratamento que mudou completamente a vida dos outrora chamados mendigos). Em outra praça — esta, sem grades — há uma horta comunitária, uma finada quadra esportiva e privacidade para namoros com uso de preservativos e recreação com uso de substâncias. Recomenda-se cautela e discrição, em ambas as atividades. A Guarda Municipal costuma fazer rondas (é fácil identificar seus integrantes, pelo uso do uniforme e abstinência de máscaras).
Toda manhã, há a coleta seletiva feita pela Kombi que anuncia, em altos e esganiçados brados, a compra de “máquina de lavar velha” (como o Estatuto do Idoso permite o uso dessas máquinas?). E toda noite, o crosfite, com música eletrônica, nas quadras poliesportivas, vem nos lembrar de outras ferrugens.
Minha mais recente descoberta nas circunvizinhanças mostra a vitalidade da área. No centro empresarial aqui ao lado funcionam, entre escritórios e clínicas, ambientes sofisticados para o exercício da mais antiga das profissões. Nada de deixar o carro na mão dos flanelinhas e subir escadarias suspeitas na Lapa: o estacionamento é amplo (e cortesia da casa). Se cruzar com algum conhecido, é só dizer que estava indo ao dentista (desculpa inviável nos sobrados da Rua das Marrecas e adjacências).
É obrigatório ouvir “Evidências” todos os fins de semana — mas nenhum lugar é perfeito, concorda?
Ilustração: Sydney Michelette Jr.