Já é comprovado que temos o potencial de tornar comportamentos do cotidiano aditivos, como compras, sexo, Internet, ou seja, adições comportamentais que não necessitam de uma ingesta química externa para se instaurar o quadro.
Na clínica, o fenômeno é visível. Nas separações ou na manutenção de relacionamentos, em negócios, fechar a empresa que abriu, para além do lado prático e factual da necessidade do dinheiro, o desespero de perder o que é visível aos olhos dos outros é algo quase não aceitável — como se o poder já fizesse parte estrutural do eixo que qualifica aquela pessoa.
Na dança dos cargos na política, é um fenômeno conhecido e comum, quando algo muda mesmo os mais bem-intencionados, “param” o trabalho para “brigarem” através de conexões e contatos, almoços infinitos e estratégias, a fim de manter-se no poder. Não tirando a intenção de alguns, que é de manter-se para ajudar e trabalhar, por exemplo, para a maioria, talvez a ideia de perder o cargo, ou o poder por si só, já ressoa como ruína, vergonha e humilhação.
A habituação ao poder e status que se vai adquirindo, transformando a ideia de desejos em necessidades, vira um formato de vida, para alguns, impensável de voltar atrás. Aí está instaurado o perigo: a pessoa permitirá quase tudo para manter isso. Valores, crenças e limites anteriormente estipulados passam a ser linhas distantes, pontilhadas e quase invisível aos olhos. Seria esse o caso do menino Henry e sua mãe?
O desejo de querer manter o que vem junto ao poder é genuíno e razoável. A questão é “a qualquer preço?” Vaidade e conforto podem transitar no humano de forma saudável, adaptativa, boa, que não gere ou faça mal a ninguém — muito pelo contrário, podem ser alimentos de bem-estar que virem capital mental, em que todos saem beneficiados.
O desespero e a incapacidade da pessoa de se ver sem o poder “adquirido” é o que resulta na catástrofe de vale tudo. E aí, salve-se quem puder. Os mais frágeis, ao redor, são sempre os mais vulneráveis.
O poder é mau por natureza? Ou estaria mais comumente em mãos erradas?
O poder corrompe, já dizia Maquiavel. Será?
Vemos muitos exemplos dessa hipótese, desde escândalos presidenciais de altos gastos, até a submissão a situações que, anos atrás, nunca se viu. Outro fenômeno comum, e às vezes menos ativo, é a passividade de se ver e fingir que não está vendo — uma cegueira seletiva, altamente tóxica também.
Talvez, o poder corrompido seja tão megalomaníaco, que deixa de ser cuidadoso e logo se torna aparente. A ideia de voltar a morar em outras casas, ter limite no cartão de crédito, não ter certos status, seja quase aversiva, daí a preferência de se endividar, de se submeter, deixar que os outros sejam maltratados, ou se maltratar.
O poder acaba sendo uma combinação de status e sujeição de forma ambígua e, por vezes, quase incoerente, no trânsito de dois polos que, a princípio, não se conectam, mas que acabam criando essa interdependência.
O que sabemos como fato científico é que o ser humano, enquanto espécie, teria a tendência à colaboração e a comportamentos empáticos. Já o que acontece com essa mesma espécie humana, quando se absorve status e poder, não pode ser limitado a um modelo. Talvez a questão esteja mais nas raízes de características de quem o absorve, começando pelo casamento explosivo de associar o poder a certas características individuais, que vão desde questões de baixa autoestima, narcisismo, caráter, ou mesmo só maldade, como se diz nas redes, “nem tudo é transtorno mental; às vezes, é falta de caráter mesmo”.
Na atual cultura de aparências, mostrar o que se tem ou o que se é, para uma quantidade enorme de pessoas ao mesmo tempo, elevou esses reforçadores de vaidade a uma escala nunca antes vista. É a quase incapacidade de alguns de viver sem ele, tristemente visível nas pessoas que foram retiradas ou forçadas a sair dele, sem terem escolha, adentrando numa melancolia, um vazio, muitas vezes não tratável, quase numa vingança, em que o que alimentava se torna agora o que quase mata.
Deixemos claro que adicção e escolha não caminham juntas. Adicção vem do latim addictum, que significa “escravo de afeição”, remetendo a aprisionamento. No poder, mesmo que em algum recôndito, pouquíssimo visitado de alguns cérebros, há sempre a possibilidade de fazer diferente.
E, sim, existem pessoas que se conectam ao poder e status de formas saudáveis, organizadas e que se veem vivendo sem tal, por mais que não queiram. Aí, esse possível monstro interno não faz parte, havendo uma autorregulação e possibilidade de trânsito, para que se possa sair quando houver algo de que se discorde. O poder, em essência, não é o mal – aliás, é muitas vezes por onde possa existir cuidado, ajuda, regulação e tudo aquilo de bom do nosso lado humano. A conexão que cada um faz com ele é que pode desvirtuar.
Daniela Faertes é psicóloga, formada na PUC-Rio, especialista em terapia cognitiva e mudança de comportamentos prejudiciais. Atuou no Serviço de Psiquiatria da Santa Casa de Misericórdia, como supervisora, coordenou o núcleo de tabagismo e criou o setor de amor patológico. É membro da American Cognitive Therapy Association. Atualmente, é diretora do Espaço Ciclo, no Rio, palestrante e supervisora clínica e de Grupos de Estudo em Terapia Cognitiva.