A pandemia viral é a mais óbvia, todos nós acompanhamos. Mede-se em número de casos e de mortes, em quantidade de leitos ocupados e em índices sofisticados, como taxas de transmissão e de vacinação.
Entretanto, o vírus carreia outras epidemias, menos visíveis, mas não menos cruéis.
A epidemia dos pacientes com doenças cardíacas, doenças respiratórias, tumores, que deixaram de ser atendidos por conta do colapso dos sistemas de saúde. A epidemia de sobrecarga de trabalho, de exaustão física e mental dos profissionais, obrigados a conviver com a ansiedade e a depressão causadas pelas sucessivas perdas. A epidemia de perda do ano escolar e de socialização enfrentada pelas crianças e adolescentes. A epidemia de medo e solidão, que apavora principalmente os idosos. A epidemia de desemprego, de miséria, de fome. A epidemia das sequelas da Covid-19, que se traduzem em distúrbios neuropsiquiátricos, fadiga, alterações cardíacas e respiratórias, a serem enfrentadas pelos sobreviventes, depois de todo o sofrimento da fase aguda.
Mas, talvez, uma das menos percebidas, seja a epidemia do arrependimento.
Arrependimento por ter transmitido o vírus aos que amava. Arrependimento por não ter se vacinado quando era possível. Arrependimento por ter menosprezado a gravidade da doença, por ter confiado em curas mágicas, por não ter se protegido adequadamente, por ter achado que era uma doença que só pegava nos outros.
Como acolher essas pessoas? E, sobretudo, por que acolhê-las?
Assim como não estaremos totalmente protegidos enquanto todos não estivermos protegidos, nossa sociedade não estará curada de suas fraturas enquanto todos não formos curados. Diante da epidemia de Fake News e da ausência de uma orientação nacional clara, a população se viu diante de decisões que nunca deveriam ter sido individuais, e, sim, parte de um programa de saúde pública. Avaliação de efetividade e risco de vacinas, profilaxias e tratamentos deveriam ter sido claramente comunicados à população desde o início, de forma sistemática.
A maioria da população brasileira não é negacionista, mas está confusa, perdida entre orientações contraditórias, sem saber distinguir qual é a mais relevante. O peso do arrependimento será sentido de forma individual, íntima. A cura da nossa sociedade, entretanto, deverá ser coletiva.
Cassia Righy é intensivista, médica do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer e pesquisadora do Laboratório de Medicina Intensiva da Fundação Oswaldo Cruz. Fez doutorado em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas na Fiocruz e pós-doutorado no Instituto Pasteur.