Em janeiro de 2020, eu já estava alarmada com as notícias sobre a pandemia. O que mais me intrigava era o aparente descaso geral com a colisão iminente do vírus no nosso país. Eu só pensava: “Precisamos cancelar o carnaval; no meio de março, as pessoas vão começar a cair doentes”. Lembro que estava em um projeto de longa e virei motivo de piada por querer distanciamento e usar máscara. Foi preciso muito para que as pessoas começassem a realizar o que estava acontecendo. E, embora pareça impossível, tenho a sensação de que, para algumas pessoas, essa negação ainda perdura.
Então, a pandemia me trouxe muita reflexão sobre esse jeito nosso, porque é do humano não querer sofrer, querer evitar o desagradável e finito a todo custo, mas existem momentos em que é preciso enfrentar o que se coloca diante de nós. Pensei muito sobre como o nosso povo, na maioria das vezes por falta de perspectiva, prefere o prazer da fantasia. E, quase sempre, remetemos a fantasia ao positivo, onírico, maravilhoso; no entanto, ela pode ser negativa e destrutiva também. A fantasia de impotência cívica é grave no nosso país. Venho pensando nisso desde o começo da pandemia, até porque absurdos contra a população seguem acontecendo.
Para mim, que sou roteirista, o home office nem foi uma mudança muito brusca porque a minha profissão, por excelência, já é solitária e, na maioria das vezes, trabalho em casa. Só que eu faço isso há anos e estou acostumada, mas, pra quem não estava, foi um baque, uma grande mudança de cotidiano. Uma mudança radical que me lembrou muito uma reabilitação. Cortamos o cigarro de um dia para o outro. Vamos ter a crise de abstinência, mas, uma hora, o corpo se adapta. Só que relações humanas não são nicotina. Conseguiremos nos adaptar à falta de contato? Aquela aglomeradinha feliz? A passar longas horas sentados diante de uma tela, com a vida sendo entregue em delivery? Tudo isso não é uma forma mais sintética de implantar um novo modelo de consumo, um 5G da vida? Vai saber! Mas é preciso pensar.
O ponto positivo disso tudo me parece ser o renascimento do valor do simples, que, se a gente pensar bem, nem é tão simples assim. Um quintal, um almoço com a família, ser servido por um garçom simpático, ter um bom vizinho, fazer uma viagem de final de semana, andar de cara limpa, exercitar-se, alimentar-se sem GMO, ter contato com a natureza, consumir menos, reciclar o que se consome e principalmente valorar cada dia. Todos esses pontos surgiram na minha cabeça nesse último ano e influenciaram muito na minha produção. Fiz minha primeira Audiosérie #TdVaiFicar sobre moradores de um prédio na pandemia — como as relações entre os vizinhos podem mudar em momentos limites. Escrevi a quinta temporada de Sessão de Terapia para o Globoplay, com a direção de Selton Mello e produção da Moonshot Pictures, num tempo insano de três meses.
Num primeiro momento, considerei impossível a tarefa, mas essa urgência de vida que uma pandemia traz exerceu um enorme peso e pensei: “Vai dar”. Conseguimos. A série estreou em junho e ficou muito emocionante. Também publiquei meu primeiro livro de poesia, “Aquela que não é mãe”, pela Buzz, e foi no mesmo movimento de agora ou nunca. O interessante do livro é que ele foi escrito lentamente e sem pretensão alguma de publicação. Eram escritos para meus olhos somente, mas que, no começo deste ano, eu revi e o livro aconteceu.
Às vezes é muito bom a gente ter essa urgência e deixar de adiar ou deixar de guardar algo só para si e compartilhar com o outro. Não precisamos compartilhar tudo – talvez hoje exista um excesso tamanho de compartilhamento que as pessoas nem valorizem mais o que é compartilhado e estejamos banalizando o que não deveria ser banalizado. Então, conceitos, como compartilhar, pensar no próximo, viver o hoje, defender seus direitos, dialogar, se posicionar-se, cuidar da saúde, valorizar a ciência, por exemplo, tornaram-se clichês, e não deveriam.
Jaqueline Vargas tem mais de 20 anos de carreira criando obras de ficção para cinema, TV, streaming e literatura — de curtas e longas-metragens a séries e novelas. Entre seus mais recentes projetos, “Sessão de Terapia” (GNT/Moonshot Pictures), cuja 5ª temporada está no Globoplay. Entre os demais trabalhos audiovisuais recentes da autora, estão as séries Maria Magdalena (Netflix) e Rua Augusta (Amazon Prime Video), as novelas Terra Prometida (Rede Record), Malhação — viva a diferença (Rede Globo), e os longas-metragens Querida mamãe, estrelado por Selma Egrei e Letícia Sabatella, e Predestinado — Arigó e o espírito do dr. Fritz, com Danton Mello e Juliana Paes.