Sempre senti “medo” de perseguições em nosso país. Sim, meu pai foi o Capitão Bersaglieri, do exército pessoal de Mussolini. Toda a família Nandi era proprietária de metade da cidade de Treviso, Vêneto italiano; a família continua lá, tenho dupla nacionalidade. Massimo Nandi veio ao Brasil num convênio entre Getúlio Vargas e Mussolini em 1934, para introduzir no Brasil o cooperativismo que, na Itália, era um sucesso.
Veio meia dúzia de italianos, dentre eles meu pai, que era engenheiro agrônomo — modificou a forma do plantio das uvas em Carramanchão para Espaldera, ao redor da montanha em direção ao sol nascente — e fundou com outros a primeira cooperativa brasileira, a Cooperativa Vinícola Garibaldi. No ano em que nasci, 1942, um mês antes de junho, ou seja, em maio, meu pai foi feito prisioneiro como Quinta Coluna. Minha mãe sofreu um choque nervoso e, com sete meses de gravidez, a barriga começou a tremer, tremer, sem parar… mas nem assim eu não nascia. Deve ter sido medo! Com 21 anos, estou em 1964, no Teatro Oficina, em São Paulo, quando o teatro é invadido pela polícia militar do golpe. Vivenciei novamente todo um horror com relação a perseguições, de todos os meus colegas de teatro da época, torturas, prisões, exílios.
Porém, antes, é preciso lembrar rapidamente fatos básicos que foram responsáveis pela deformação educacional que se instaurou em nosso país, gerando o modelo que está em vigor até os dias de hoje, infiltrado pelo espírito mercadológico e de despersonalização nacional. Precisamos ter consciência de que passaram a nos ensinar a “ganhar a vida”, e isso não é a mesma coisa que “saber viver”.
A Educação que se ensina em nosso país ainda é, nos dias atuais, fruto do processo de “controle ideológico”, criado a partir de 1943, quando foi instalado o Birô Interamericano no Brasil, com apoio de um comitê de empresários e políticos profissionais. Suas atividades ligadas ao governo americano consistiam em realizar grandes investimentos monopolísticos na área cultural e de informação além da base econômica, inundando o País com seus filmes, jingles, literatura, publicidade etc. Transcrevo, a seguir, a entrevista do professor Roberto Leher, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para o jornal “A Nova Democracia”:
“Somente em 1964 é que se torna público o Acordo MEC — Usaid e já alguns termos aditivos, celebrado pelo Ministério da Educação (MEC) e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês United States Agency for International Development). Representantes do MEC receberam treinamento em universidades dos USA e depois disseminaram a filosofia pedagógica útil ao pensamento dos novos colonizadores, de mercado do capital humano, explorador, em detrimento dos valores humanistas, da independência e soberania de nossa sociedade. Na década de 90, o Banco Mundial passou a atuar em consonância com a Organização Mundial de Comércio (OMC) para adequar o ensino superior do nosso país à mercantilização. Mas como entender um banco interferindo em assuntos educacionais? O Banco Mundial não tinha vinculação maior com a Educação: financiava parcialmente a Unesco (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization/Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), mas não tinha vinculação direta. Começa a se interessar por Educação quando passa a operar não só na sustentação de modelos econômicos; entende também que é preciso atuar na governabilidade dos países, no controle ideológico — sobretudo no período da Guerra Fria.”
Ditadura é um vírus. Não se tira do corpo como se fosse um casaco — um mal que deixou rastros. Agora, com quase 80 anos, vejo novamente acontecer nova forma impositiva de governo desumanizado, aproveitador de um vírus — o vírus de ferro. O pulmão desconhece, se sufoca, se entope. Era de Ferro. Tudo é cíclico, nova Era de Ouro virá, mas antes também haverá uma limpeza: a terra será arada.
Preconceito com relação a quê? Se estou convencida de que o nosso interior é o mesmo, seja de onde venha, que cor tenha… sei lá, apesar dessa coisa de “símbolo sexual” que girou sobre mim, eu sempre fui um ser bastante espiritualizado. Quando li Simone de Beauvoir, eu tinha 12, 13 anos, me tornei existencialista; daí cresci para o humanismo. E a cada ano que passa, mais creio em Milagres. Sim, hoje as dificuldades com a cultura são piores do que nos anos 1960. Pela primeira vez em meus tantos anos como produtora, a Nandi Produções, com lei Rouanet aprovada, conta aberta no BB e eu não consigo patrocínio?! Quando isso aconteceu na minha carreira? Nunca antes. A censura atualmente é pior do que foi. Ela existe, mas não existe. Há corrupção, mas não há corrupção. Se pelo menos esse governo soubesse administrar o país… Administram mal! Por isso que eu disse: “Administram com a bunda”. E a nossa Secretaria? Ministério de Cultura, que eles não sabem o que fazer com ela? Isso é tão simbólico pra mim!
No Teatro Oficina, que foi onde fiz a minha formação de atriz, nos nove anos que lá permaneci como produtora e atriz, desenvolvi minhas melhores qualidades, tanto como pessoa, como atriz; tenho fé, não tenho religião, mas fui batizada, crismada, e também nunca pertenci a partido nenhum, detesto essa palavra: partido.
Sempre toda minha vida lutei muito pela minha liberdade e de todas as mulheres brasileiras porque sei muito bem quanto é dura e discriminatória a forma patriarcal familiar educacional existente em nosso país.
Fumei maconha quando todo mundo fumou. Foi bom, eu com tantos medos vivenciados, e a tensão do nosso próprio papel na sociedade, a cannabis me fez bem. Mas não vivo em função disso. Para a medicina, ela é muito importante. E convenhamos, muito melhor do que cocaína, LSD, enfim essas coisas pesadas. Não curto. Não tenho espírito vicioso. Durante dois anos, fazendo a peça “Um Equilíbrio Delicado”, com o Walmor Chagas e a Tônia Carrero, meu personagem fumava a peça inteira… Me pergunta se quando a peça acabava eu fumava? Não. Fiquei viciada? Não.
Nossa Escola de Formação de Atores no Espaço Nandi, na Estrada dos Bandeirantes, está indo muito bem, apesar da pandemia, e mesmo sendo virtual. A qualificação das prof. Michele, Ana Amélia, Roberjane e Giuliano, filhão, administrador da Escola, dando aula de cinema. Sim, eles são poderosos e conseguiram enfrentar a pandemia. Acredito que em outubro volte ao presencial.
Exatamente a frieza de comportamento do atual ser “humano-que-se-diz-brasileiro! ” Espanto com a perda de norteio do nosso pobre povo brasileiro. Essa é a diferença maior. Entre hoje e ontem. Já fomos mais calorosos, mais humanos. A Terra das Palmeiras já tem poucas Palmeiras. Não temos mais uma nuvem desonerada! Hoje somos só preconceito! Com um véu transparente englobando todo esse morticínio! E agora nós sabemos que eles estão ganhando algum tostão em cada morto nacional!
Foto: Felipe O’Neill
Ítala Nandi é atriz com 60 anos de carreira, mais de 20 filmes no currículo, personagens marcantes na TV e no teatro. Seu novo espetáculo, “Paixão Viva”, escrito por ela e o cineasta Evaldo Mocarzel, que também a dirige, em que passa a limpo toda a sua trajetória, está disponível no YouTube do Sesc-SP.