Especulou-se, no ano passado, que 007 — também conhecido como Bond, James Bond — passaria a ser interpretado pela atriz Lashana Lynch.
Se já houve 007 escocês, inglês, irlandês, americano e australiano, do signo de Virgem, Touro, Áries, Peixes, Leão e até de Libra, por que se haveria de criar caso com a permissão para matar – e para pedir um Martini batido, não mexido – vir a ser concedida a uma mulher, e negra?
“Bond, Jackie Bond”. Não soa mal.
Talvez ela pedisse um Manhattan (“Com cranberry, não cereja”) e dispensasse os “bond boys” em traje de banho.
Mas podiam mesmo era ter criado a agente 008 – numa referência ao 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Ou, para maior empoderamento, a agente 777. Não, alguém ia fazer a piada machista de dizer que a agente especial a serviço de sua Majestade era um avião.
Acabou que Bond continuou sendo James — e Daniel Craig. Mas a coisa serviu de balão de ensaio.
Numa continuação, é provável que a pequena sereia seja um menino. Talvez metade menino e metade polvo, vá saber. Afinal, Branca de Neve já foi negra (Adele Fátima, quem já tinha mais de 18 anos em 1979 há de se lembrar).
Estamos falando de personagens de ficção. Seres imaginários.
Deus era sempre homem e branco. Mas foi negro (Morgan Freeman), mulher (Octavia Spencer), e o Vaticano continua de pé, com a chaminé a postos para muita fumacinha branca.
Até Marighella (personagem real, mas com uma biografia, digamos, inventiva) já foi negro – o que abre precedentes para que Martin Luther King seja interpretado por um coreano, ou Mao Tsé Tung, por um nórdico.
Kate Blanchett já foi Bob Dylan num filme. Nathalia Timberg era mãe da Susana Vieira numa novela. Luís Melo, um japonês.
Temos que nos libertar de vez do “naturalismo” e entender que atores não “são”: atores “representam”.
Imagine se só gays pudessem fazer personagens gays — e fosse restrito aos heterossexuais contumazes os papéis de personagens de sexualidade ortodoxa. O que teria sido da carreira de tantos galãs de Hollywood?
Quantos atores poderiam se candidatar a Hannibal Lecter? Tirando o Schwarzenegger, ninguém mais poderia fazer papel de robô. O único habilitado a estrelar filme de vampiro seria o Max Schreck (quem viu o primeiro “Nosferatu” ou “A Sombra do Vampiro” sabe do que estou falando).
Papéis de sonso seriam exclusividade do Hugh Grant. Só Adam Sendler poderia fazer papel de Adam Sendler (se bem que essa lei foi seguida à risca).
Já se foi o tempo em que a vilã da novela era xingada na rua e o vilão não era convidado para apresentar baile de debutante em Paracatu. Hoje quase todo mundo sabe que cinema, teatro, novela, promessa de campanha é tudo mentira.
A arte é uma ilusão.
Representar, etimologicamente, quer dizer “colocar-se à frente de”. Não é ser tal e qual: é estar no lugar de outro.
Deixemos 007 ser mulher, os egípcios das novelas bíblicas da Record manterem aquela postura de Baixo Gávea, o Saci Pererê ser ruivo e chutar com as duas.
Só vou ficar preocupado quando o Super Homem for uma trans lésbica ianomâmi acima do peso não binária — e soltar teia de aranha pelos calcanhares.
Ou a Mulher Maravilha virar um halterofilista verde nos dias em que se esquecer do rivotril, tiver um suricato de estimação chamada Chita, usar cipó como meio de transporte e morar na Batcaverna.
Aí sim, terá sido cruzada uma linha — e nas redações de alguns jornais será preciso haver uma conversinha sobre pauta identitária.